Por Felipe Pimentel
Psicólogo e historiador
A incerteza possui uma história antiga. Todos os tipos de saberes lidaram com ela e tentaram fazê-la calar – ou, pelo menos, lhe dar algum remédio. As religiões, as filosofias, as legislações, as ciências. As religiões buscaram trazer conforto nas horas incertas e rituais, prescrições e crenças que podiam fazer ela silenciar dentro de nós. Ainda o fazem (com algum sucesso). As filosofias, na sua busca pela verdade, talvez tenham lutado mais contra a incerteza do que contra a falsidade. E do mesmo modo a ciência. Ambas com diferentes resultados.
Quando olhamos em retrospecto, parece que a dúvida, com altos e baixos, só ganhou força. A escola cética, na Idade Antiga, afirmava que algumas perguntas não podiam ser respondidas e que sobre elas nos restava “suspender a questão”, isto é, parar de nos interrogar sobre tais. Já na Idade Moderna, a dúvida cresceu de forma tal, ao ponto de se tornar a dúvida hiperbólica de Descartes, fundamento de toda uma teoria do conhecimento. O pensador francês colocou as coisas de um modo nunca antes visto: ele supôs que a realidade como um todo podia se tratar de um grande engano, de uma falsificação, de uma miragem. O argumento, famoso, é complexo – e não cabe aqui para ser reproduzido – e potente o suficiente para extrair, da dúvida sobre tudo, a certeza do pensamento (só quem pensa, duvida), e desta, a existência do ser pensante (quem pensa, logo existe).
O pensamento contemporâneo expandiu a fórmula cartesiana para todas as áreas do saber, quer dizer, continuou usando a dúvida como uma ferramenta metodológica: é importante duvidar, porque é dela que se extrai o conhecimento; é crucial questionar as certezas estabelecidas para que pensemos de modo autônomo e racional. Não demorou muito para que a dúvida atingisse a área social, política, moral e comportamental. É um modelo diferente de incerteza.
Para seguir em termos históricos, é em meados do século 19 que diferentes autores começaram a questionar o status quo de forma ampla, as verdades estabelecidas pela tradição. Aos poucos, as crenças foram erodidas, as verdades “absolutas” (para usar um clichê), erradicadas. Esses questionamentos trouxeram evidentemente maior liberdade de escolha, um espaço maior de atuação do indivíduo em busca de sua realização. Nada disso é novo. O que talvez possa ser é perceber que, talvez não à toa, os mesmos autores que vieram atacar as verdades estabelecidas começaram a falar em outros temas: a angústia, o nada, o vazio, a solidão. Está em Kierkegaard, em Nietzsche, em Virginia Woolf, em Sartre, em Simone de Beauvoir e tantos outros.
Foram esses autores que fizeram isso? Não sabemos. Provavelmente não. É mais certo que eles foram porta-vozes de uma transformação na visão de mundo da sociedade, também afetada por milhares de outros fatores: econômicos, políticos, culturais, sociais, comportamentais e, muito importante, tecnológicos. O que parece claro é que as nossas incertezas atingiram as mais recônditas camadas de nossa vida. E toda visão de mundo traz os seus ônus e os seus bônus. Sentimo-nos mais livres para fazer escolhas, mas, volta e meia, o correlato dessa liberdade, a incerteza, nos atinge em cheio – não só como a dúvida paralisante, de quem não sabe para onde ir ou como fundamentar uma decisão, mas também como a angústia diante de um solo frágil, que dificulta ou impossibilita qualquer sensação de segurança. Estamos menos convictos, porém ansiosos; mais livres, porém inseguros; mais autônomos, porém sós.
As transformações reais se somaram às transformações comportamentais e sociais, de forma que estamos incertos sobre o dia de amanhã em todas as suas faces: os empregos vão desaparecer, a inteligência artificial nos tornará obsoletos, o planeta não tem mais recursos, mercados estão incertos, a geopolítica se fragilizou, o amor e o sexo mudaram, a democracia está em risco, temos um alerta climático, uma tecnologia nova que ainda não aprendemos. Não suficiente, espere: até mesmo uma pandemia pode vir a acontecer. Como não estaríamos angustiados, diante de tamanha mudança, de tamanha incerteza? Algumas dessas dúvidas nos fizeram mais livres, mas estamos vivendo melhor?
Tenho minhas dúvidas. E, neste cenário, talvez nós tenhamos perdido um dos grandes méritos de viver em incertezas – a tolerância. Pessoas que não têm convicções fundas, crenças e verdades absolutas pelas quais morreriam, podem estar mais inseguras, mas por isso mesmo tendem a ser mais tolerantes com os outros. E por que, assim parece, também perdemos isso? A nossa incerteza, que nos fez livres, nos angustiou tanto a ponto de nos tornar violentos e intolerantes com os outros?
O Fronteiras deste ano
- Com a proposta de discutir as incertezas que marcam a contemporaneidade e apontar caminhos para superá-las, o Fronteiras do Pensamento terá seis conferências presencias em Porto Alegre, incluindo nomes como a vencedora do Prêmio Nobel da Paz, a iraquiana Nadia Murad, a escritora espanhola Rosa Montero e o filósofo político americano Michael Sandel, e também conferências online.
- Inscrições no site fronteiras.com. Informações em relacionamento@fronteiras.com, pelo fone (11) 9-7624-7423 ou WhatsApp (11) 9-3775-5752.
- O Fronteiras do Pensamento tem o patrocínio de Hospital Moinhos de Vento e CMPC, parceria cultural da Casa da Memória Unimed Federação/RS, parceria acadêmica da Unisinos, parceria educacional do Colégio Bertoni Med, serviço médico da Unimed Porto Alegre, promoção do Grupo RBS e realização da Delos Bureau, uma empresa do Grupo DC Set especializada em entretenimento cultural.
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