De fábula em fábula, citando um pensador após o outro, a escritora espanhola Rosa Montero abriu, na noite desta quarta-feira (31), em Porto Alegre, a série de conferências do Fronteiras do Pensamento. Montero fez uma reflexão sobre como a busca pela beleza, muitas vezes representada na arte, vista por alguns como algo inútil, pode nos salvar de uma vida pobre de sentido. Até outubro, outros cinco palestrantes convidados participam do evento.
Autora de Nós, Mulheres (1995), A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver (2013) e A Boa Sorte (2022), Montero estreou a edição do projeto fazendo uma defesa da literatura como ferramenta que nos transporta para mundos mais ricos do que a realidade que temos na frente.
— Por que vieram até aqui? — questionou, dirigindo-se à plateia lotada do Teatro Unisinos. — Poderiam estar em casa, tranquilos, falando com os seus queridos. O que buscam aqui? Isso é interessante. Fernando Pessoa dizia que a literatura é uma prova inequívoca de que a vida não basta. E é verdade. Não basta para nada.
Então contou a primeira história, sobre um alguém que cruza com um mendigo e lhe dá duas moedas. Ao revê-lo, pergunta o que foi que o homem fez com elas, dele ouvindo a seguinte resposta: "Com uma, comprei um pão, para ter como viver. Com a outra, uma rosa, para ter por que viver".
— A rosa, no dia seguinte, estaria completamente seca. Com rosa, não comemos, não nos alimentamos, não nos cobrimos no frio. Por que sua beleza é tão importante? Frente à nossa desesperadora solidão, tentamos dar algum sentido. Buscamos algo maior que nós mesmos, e esse algo é a beleza — refletiu.
A escritora mencionou como eram grandiosas ou muito lúdicas as profissões com as quais fantasiávamos quando pequenos, como astronauta e trapezista, coisas que ela própria ambicionava na infância. Porém, "el tiempo es un jardineiro loco", como definiu, e vai podando as possibilidades com as quais sonhávamos acordados.
— O tempo vai podando as "ramitas" (galhos) de nossas possíveis vidas, nos deixando limitados a um galho só, que é o galho de nossa existência concreta. E é sempre estreito. Precisamos transcender, sair da própria vida, porque ao sair de nossa pequena vida, saímos de nossa morte, que está nos esperando.
Ela também trouxe a história de um monge irlandês que vivia em um monastério no ano de 1348, quando a Europa foi acometida pela peste negra. Com as pessoas morrendo ao redor, ele passou a escrever em um pergaminho que fazia de diário, ora cuidando das pessoas, ora registrando os fatos, até ele próprio falecer.
Todos temos necessidade de sair da pequenez, de transcender, de poder fazer dessa vida algo maior.
ROSA MONTERO
escritora
— Quanta esperança, quanta fé para escrever nesse pergaminho, dia após dia? Flaubert dizia que escrever é uma maneira de viver. Eu acredito que escrever é uma maneira de sobreviver. Clarice Lispector, que é uma de minhas "mães" literárias, disse: "Escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida". Eu me sinto assim também — admitiu Rosa.
Aos 72 anos, mostrou uma tatuagem que ostenta na perna, uma citação do pintor francês George Braque, que diz: "A arte é uma ferida feita de luz".
— O que vamos fazer com as inevitáveis feridas da vida se não tentar converter em luz, para que não nos destruam? A arte é a química que consegue transformar o indiferente, o horrível, em algo bonito.
A palestrante ressaltou a importância das narrativas que contamos sobre quem somos e sobre nossas próprias vida. Citou um estudo feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para analisar em que circunstâncias a depressão acometia as pessoas. Segundo ela, não houve incidência significativa entre viúvos, mas sim entre divorciados. As risadas foram inevitáveis.
— O que falta aos divorciados que não falta aos viúvos? O que lhes falta é um relato consolador. Quando morre um companheiro, podemos construir um relato que console, que sirva de apoio para que a vida prossiga. Mas se é divorciado, com o ex às vezes incomodando, não tem como ter um relato consolador. O filósofo romano Epiteto dizia: "O que afeta o ser humano não é o que lhe acontece, mas o que ele conta sobre o que lhe acontece". E é verdade. Se você muda o relato, muda a tua vida.
Mencionando seu novo livro, El Peligro de Estar Cuerda (O perigo de ser são, em tradução livre), que deve ser lançado no Brasil pela Todavia até o fim deste ano, Montero também fez uma defesa da loucura, ou de certa falta de maturidade ou mesmo de juízo, para que aflorem nossa criatividade e artístico.
— A maturidade mental consiste em uma poda das conexões neurológicas para que o cérebro se concentre no que é útil e necessário para a sobrevivência da espécie, como caçar, conseguir um par apropriado, cuidar da prole. Mas cerca de 20% da humanidade "pula" essa poda. Segundo vários neurocientistas, entre esses 20% de pessoas com o cérebro "não podado" estão as pessoas com transtornos mentais e nós, pessoas que nos dedicamos a coisas criativas. Aristóteles dizia que os homens de gênio tinham todos um excesso de bile negra, já que na Grécia antiga se achava que a loucura era provocada por um excesso de bile negra.
Segundo Rosa, as pessoas com cabeças "mal podadas", ainda que não se dediquem a profissões ligadas à arte, são as que precisam da leitura para sobreviver.
— Os leitores apaixonados são cabeças mal podadas, e creio que muitos dos que estão aqui são leitores apaixonados. Todos temos necessidade de sair da pequenez, de transcender, de poder fazer dessa vida algo maior.
Ela terminou contando uma história que disse ser real, sobre um convento histórico onde viviam freiras de clausura que vendiam doces através do portão. Certa vez, uma vizinha chamada Julia, que vivia do outro lado da rua, no quarto piso de um prédio e com direito a uma sacada de frente para a morada das religiosas, aproximou-se do mosteiro e, por uma fresta, disse à monja que cuidava do portão que poderia fazer algo por ela no mundo exterior, caso necessitasse.
Dezenas de anos se passaram sem que a vizinha fosse procurada, até que a freira apareceu em sua porta pedindo para ir até sua sacada. Ali as duas ficaram por alguns minutos observando o convento, ao que a religiosa falou: "É bonito, não é?". E voltou à sua clausura, segundo Rosa, para nunca mais sair.
— A arte faz isso com a gente. Consegue nos tirar dessa vida efêmera e sem sentido e nos permite esse espaço onde podemos nos ver no todo, no mundo, ver a nós mesmos. E depois desse relâmpago, nos resignamos a morrer. Obrigada — disse, encerrando a palestra.
Programação
Até outubro, mais cinco conferencistas vêm a Porto Alegre para participar presencialmente da programação do Fronteiras do Pensamento. Outras duas palestras serão realizadas online.
Conferências presenciais
- 21 de junho: ativista iraquiana e Prêmio Nobel da Paz Nadia Murad
- 5 de julho: neurocientista norte-americano David Eagleman
- 9 de agosto: filósofo político americano Michael Sandel
- 13 de setembro: teórico da mídia norte-americano Douglas Rushkoff
- 4 de outubro: arqueólogo britânico David Wengrow
Palestras online
- 30 de agosto: filósofo francês Luc Ferry
- 31 de agosto: Eduardo Gianetti, economista, e Christian Dunker, psicanalista
Fronteiras do Pensamento
O Fronteiras do Pensamento tem o patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Sulgás e CMPC, parceria cultural da Casa da Memória Unimed Federação/RS, parceria acadêmica da Unisinos, parceria educacional do Colégio Bertoni Med, parceria institucional da Prefeitura de Porto Alegre e do Instituto Unicred, serviço médico Unimed Porto Alegre, promoção do Grupo RBS e realização da Delos Bureau, uma empresa do Grupo DC Set especializada em entretenimento cultural. As inscrições são feitas pelo site do Fronteiras do Pensamento.