Após sofrer um acidente, um homem começa a tomar um medicamento para suportar a dor incapacitante causada por uma lesão na coluna. Com a droga, a prostração constante dá espaço à rotina normal no trabalho e em casa. Mas seu organismo começa a criar tolerância, levando ao aumento da dose.
Uma posterior falta do remédio faz com que o paciente vasculhe sua residência, arrastando eletrodomésticos no meio da noite, para encontrar um comprimido perdido. Em outra ocasião, sente-se mal enquanto almoça com a família em um restaurante e, ao tentar se levantar, cai no chão levando consigo a mesa e toda a comida. O diagnóstico vem durante o atendimento no hospital: overdose pelo uso de opioides.
Séries, filmes e livros que retratam a epidemia de opioides
O caso descrito é apresentado na minissérie ficcional Império da Dor, lançada pela Netflix em agosto deste ano. A produção aborda as causas e as consequências da epidemia de opioides nos Estados Unidos, trazendo, no início de cada um dos seis episódios, depoimentos reais de pessoas que perderam familiares devido ao abuso dessa classe de medicamento.
E essa não é a única obra sobre o assunto. Nos últimos tempos, com a piora da crise na América do Norte, o tema serviu de enredo para diversos outros filmes, séries e livros, entre os quais o longa-metragem Máfia da Dor, de David Yates (Pain Hustlers, Netflix, 2023), o documentário O Crime do Século, de Alex Gibney (HBO Max, 2021), a minissérie Dopesick, criada por Danny Strong (Star+, 2021), e o romance Longo e Claro Rio, de Liz Moore (ed. Trama, 2021).
O que são os opioides?
Os opioides representam uma classe de medicamentos que engloba opiáceos naturais, derivados da planta Papaver somniferum, popularmente conhecida como papoula, semissintéticos e sintéticos, que são totalmente fabricados em laboratório.
No primeiro grupo, está a morfina; no segundo, a heroína e a oxicodona; e, no terceiro, a metadona, o tramadol e o fentanil. Esses fármacos analgésicos são indicados para tratar diferentes níveis de dor, mas podem causar dependência quando utilizados da maneira indevida, como drogas de abuso.
De acordo com o farmacêutico José Roberto Santin, presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) e membro do Grupo de Trabalho sobre Toxicologia do Conselho Federal de Farmácia (CFF), os medicamentos se ligam aos receptores opioides endógenos, localizados no sistema nervoso central e no sistema nervoso periférico. Como consequência, reduzem a dor.
— Por conta da atuação sobre o sistema nervoso central, podem gerar efeitos como relaxamento, sedação e confusão mental. O problema é que as pessoas criam tolerância e precisam aumentar a dose gradativamente para obter o mesmo efeito. Então, ficam mais propensas a ter uma intoxicação, que pode causar depressão respiratória, o que geralmente leva o paciente a óbito — explica.
Nos Estados Unidos, mais de 106 mil pessoas morreram de overdose associada a drogas somente em 2021. Desse total, 80.411 estão relacionadas a opioides prescritos, incluindo aqueles naturais, semissintéticos e sintéticos (principalmente fentanil). O número apresentado em um relatório de junho deste ano do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (Nida, na sigla em inglês), com base em dados do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde daquele país, aponta um crescimento de 61% nesses óbitos quando comparado a 2019.
Santin ressalta que medicamentos como a codeína, morfina, oxicodona, tramadol e metadona são extremamente importantes para alívio da dor e, no Brasil, são de uso controlado. Isso significa que só podem ser adquiridos nas farmácias com prescrição médica e retenção de receita. Já o fentanil, que se tornou um dos maiores causadores de mortes por overdose nos EUA ao ser utilizado indevidamente, tem uso restrito a hospitais.
— O fentanil tem aproximadamente cem vezes a potência da morfina e 50 vezes a da heroína. É utilizado para analgesia de curta duração durante o procedimento anestésico, para intubação de paciente ou no pós-operatório, quando precisa de algum tratamento mais agressivo. Não é para qualquer situação. O problema é que as pessoas vêm usando como droga de abuso — aponta o presidente da SBTox.
Lisia von Diemen, médica psiquiatra e coordenadora de Saúde Mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), acrescenta que a chance de um paciente criar dependência pode ser maior ou menor, dependendo dos efeitos do remédio. A codeína, por exemplo, que pode ser usada para dor moderada, é mais fraca, enquanto o fentanil é mais forte e tem alto potencial dependógeno.
A especialista ainda esclarece que o que desencadeou a crise dos opioides nos Estados Unidos foi o lançamento da oxicodona, no final da década de 1990:
— Até o surgimento dela, os opioides fortes eram injetados, enquanto os moderados e fracos, com potencial dependógeno menor, eram via oral. O oxicodona foi o primeiro forte que pode ser usado via oral, então, em vez de as pessoas ficarem internadas, elas passaram a usar um opioide forte em casa. E, junto à melhora no tratamento da dor, o marketing em cima da oxicodona foi muito forte, passando uma mensagem de que não causava dependência. Isso (a propaganda retratada em filmes e séries) realmente aconteceu.