Se nos Estados Unidos o uso de opioides é tratado como uma epidemia cujos impactos são cada vez mais retratados em séries, filmes e livros, no Brasil o cenário é diferente. Medicamentos como a codeína, morfina, oxicodona, tramadol e metadona - extremamente importantes para alívio da dor - por aqui são de uso controlado. Já o fentanil, que se tornou um dos maiores causadores de mortes por overdose nos EUA ao ser utilizado indevidamente, no Brasil tem uso restrito a hospitais. Mesmo assim, especialistas afirmam que o assunto requer atenção.
Apesar de haver registros de apreensões de fentanil no país nos últimos anos, o farmacêutico José Roberto Santin, presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) e membro do Grupo de Trabalho sobre Toxicologia do Conselho Federal de Farmácia (CFF) afirma que os opioides ainda não representam um problema ou uma ameaça como droga de abuso. José Luiz da Costa, coordenador-executivo do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concorda e acrescenta que o controle do acesso a esse tipo de medicamentos aqui é bem mais rígido do que nos Estados Unidos.
Já Lisia von Diemen, médica psiquiatra e coordenadora de Saúde Mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), alerta para o aumento do uso de opioides prescritos para tratamento da dor sem a devida cautela.
Em março deste ano, a equipe do Ciatox do município do interior de São Paulo emitiu um alerta sobre a presença de fentanil em casos de intoxicação por drogas de abuso atendidos em unidades de emergência referenciadas da região metropolitana do município paulista. No Rio Grande do Sul, o Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) da Polícia Civil ainda não registrou nenhuma entrada dessa substância em seu depósito, informa o diretor da divisão, delegado Carlos Wendt. Já houve, entretanto, apreensão de frascos de codeína e de morfina.
De acordo com Costa, o documento publicado no início de 2023 teve como objetivo alertar os serviços de emergência e os profissionais de saúde para a presença de manifestações clínicas sugestivas de intoxicação por opioides, como miose e depressão respiratória. O especialista também ressalta que, diferentemente da maioria das drogas, esses medicamentos têm um antídoto específico, que bloqueia a ação dessa classe de fármacos: a naloxona. Por isso, ressalta a importância de ter a substância que pode ser utilizada em casos de intoxicação disponível em ambulâncias e prontos-socorros.
— Precisamos levar em consideração que casos de intoxicação são raros aqui ainda. Tivemos uma série de registros no início do ano e, de lá para cá, continuamos tendo outros, mas nada muito expressivo. O alerta é justamente para evitar que se torne um problema mais sério. O consumo é baixo, mas é preciso ter atenção e não negligenciar — diz o coordenador-executivo do Ciatox.
Há muitas prescrições erradas. Para dor crônica não é indicado usar opioides, a não ser que seja paciente oncológico. Os médicos precisam ter mais cuidado, inclusive avaliando o risco de dependência.
LISIA VON DIEMEN
Psiquiatra e coordenadora de Saúde Mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Para Santin, atualmente a maior preocupação é alertar os profissionais de saúde sobre a correta conduta nos atendimentos de pacientes intoxicados.
O presidente da SBTox destaca ainda que, nos Estados Unidos, há laboratórios clandestinos que fabricam o fentanil. Então, mesmo que a venda também seja sob prescrição médica, é fácil adquirir a substância no mercado ilegal – situação que não ocorre no Brasil.
Lisia complementa que, nos Estados Unidos, muitos pacientes recorrem à heroína quando os médicos deixam de prescrever outros opioides. E, no Brasil, não há circulação em grande quantidade dessa droga semissinética ilegal, que não tem indicação para uso farmacêutico.
De toda forma, a psiquiatra afirma que há um aumento no número de prescrições de opioides em geral e de pacientes dependentes de substâncias como a morfina. Esse crescimento na busca por consultorias psiquiátricas em função do abuso dessas drogas é observado por profissionais que trabalham em hospitais de Porto Alegre, segundo Lisia.
Por isso, ela destaca que o uso de opioides não é indicado para qualquer pessoa ou para qualquer tipo de dor:
— Há muitas prescrições erradas. Para dor crônica não é indicado usar opioides, a não ser que seja paciente oncológico. Os médicos precisam ter mais cuidado, inclusive avaliando o risco de dependência. Histórico de depressão, ansiedade, dor crônica e abuso de outras substâncias são fatores de risco para desenvolver dependência de opioides. Isso tem que ser considerado na hora da prescrição. Como qualquer tratamento, tem que pesar o custo-benefício, tem que usar pelo menor tempo e a menor dose possível.
O desafio de conviver com a dor
Dados preliminares da última edição do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos (ELSI-Brasil), divulgados pelo Ministério da Saúde no início deste mês, apontam que dores crônicas fazem parte do cotidiano de 36,9% dos brasileiros com mais de 50 anos, sendo que, desses, 30% usam opioides para tratar o problema. Números fornecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mostram um aumento de 104% na venda de tramadol em 10 anos, passando de 2.917.588, em 2013, para 5.954.229, em 2022.
No mesmo período, a comercialização de morfina cresceu 46,4%, atingindo 736.160 no ano passado. Contudo, houve um pico de mais de 4,4 milhões somente em 2019. Já as vendas de fentanil caíram 54,8% entre 2013 e 2022, mas, assim como no caso da morfina, há uma elevação significativa em 2019, atingindo 2,1 milhões.
Usamos medicamentos para a dor, mas de forma bem mais regrada do que nos Estados Unidos.
JOSÉ LUIZ DA COSTA
Coordenador-executivo do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) da Unicamp
— A pandemia aumentou a circulação de fentanil nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Não temos dados de aumento dos dependentes em função disso, mas é um alerta. O Brasil tem um risco de uma crise de opioides pelo aumento das prescrições. O que é preciso é uma melhor formação dos profissionais da saúde sobre os riscos e critérios para indicar ou não o uso de opioides para o tratamento da dor, estudos para monitorar o uso pela população e controle rígido das prescrições e vendas — salienta Lisia.
A reportagem também solicitou números referentes a codeína, oxicodona e metadona, mas a Anvisa informou que há uma regra que impede o fornecimento de informações sobre a comercialização quando o produto é vendido por até três empresas.
Regramento diferenciado
O coordenador-executivo do Ciatox de Campinas pontua que o sistema de farmacovigilância do Brasil é bem diferente do norte-americano, o que não torna o cenário favorável para uma crise. Ele enfatiza que o mercado de rua de opioides é muito pequeno e que, no Brasil, não há risco maior de epidemia.
— Se o paciente tiver prescrição médica, consegue comprar na farmácia, mas a vigilância que existe em cima do remédio controlado é muito alta. Se não tiver médico prescrevendo, não tem como comprar, e os médicos prescrevem pouco. Usamos medicamentos para a dor, mas de forma bem mais regrada do que nos Estados Unidos — garante Costa.
Nos hospitais, o fornecimento desses medicamentos também segue uma série de regras. Na farmácia do Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital de Clínicas da Capital, por exemplo, os opioides e outras drogas controladas ficam em um armário fechado, que só pode ser acessado por profissionais autorizado, que trabalham dentro do setor.
Clei Ângelo Mocelin, farmacêutico da farmácia do CTI, explica que o opioide é dispensado na quantidade prescrita pelo médico. O medicamento pode ser entregue no balcão ou pelo correio pneumático, um sistema de tubos que envia os remédios do setor até outras unidades do hospital. No caso dos psicotrópicos, a capsula é trancada com um cadeado na farmácia e, ao ser recebida, só pode ser aberta pelo enfermeiro que tem a chave.
Outra diferença importante em relação ao país da América do Norte é que a propaganda de medicamentos no Brasil é mais controlada. De acordo com a Anvisa, para o público geral, só é permitida a publicidade de remédios de venda isenta de prescrição médica, ou seja, aqueles que não possuem tarja vermelha ou preta em suas embalagens. Os remédios controlados só podem ser anunciados aos profissionais de saúde que podem receitá-los (médicos ou dentistas) ou dispensá-los (farmacêuticos).