
A Netflix lança nesta quarta-feira (23) os três episódios da série Congonhas: Tragédia Anunciada (2025), documentário que reconstitui o desastre do voo TAM 3054, ocorrido em 17 de julho de 2007.
Naquele dia, o Airbus A320-233 que havia decolado em Porto Alegre não conseguiu frear sobre a pista molhada ao pousar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Ao curvar para a esquerda, o avião planou sobre a Avenida Washington Luís e colidiu com um prédio da própria empresa de aviação e um posto de gasolina, matando todos os 187 passageiros e tripulantes a bordo e mais 12 pessoas em solo.
É o mais mortífero acidente aéreo do Brasil. Entre as vítimas, estavam o deputado federal gaúcho Júlio Redecker (PSDB), então com 51 anos, e o advogado Paulo Rogério Amoretty, 61, ex-presidente do Inter.
A série foi dirigida e coescrita por Angelo Defanti, nascido em Niterói (RJ) e autor dos documentários Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete (2014) e Verissimo (2024), além do longa-metragem de ficção O Clube dos Anjos (2022). Em depoimento dado para a Netflix, Defanti contou que a ideia do projeto surgiu em 2016, durante uma visita ao Memorial 17 de Julho, erguido no local da tragédia:
— O memorial estava começando a apresentar um certo desgaste, e aquilo me surpreendeu muito. Era para ser uma homenagem, mas talvez estivesse se tornando um símbolo da falta de memória.
E da falta de justiça. Em maio de 2015, o juiz Márcio Assad Guardia rejeitou a denúncia da Procuradoria da República contra o então diretor de segurança de voo da TAM (hoje Latam), Marco Aurélio dos Santos de Miranda e Castro, o então vice-presidente de operações da companhia aérea, Alberto Fajerman, e Denise Abreu, que na época era diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). O Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo alegava que os três sabiam dos riscos de uma tragédia.

Como é a série "Congonhas: Tragédia Anunciada", da Netflix
O diretor Angelo Defanti procurou imprimir um olhar panorâmico, construído a partir de um grande desafio: a vastidão de reportagens, inquéritos e documentos. Em Congonhas: Tragédia Anunciada, ele tenta articular todos os pontos relacionados ao acidente. Vale prestar atenção na metáfora da teoria do queijo suíço, proposta pelo professor britânico James Reason (1938-2025) e citada por um perito ouvido pelo diretor: falhas em vários níveis levaram à catástrofe.
A série da Netflix contextualiza: aborda os antecedentes de Congonhas, um aeroporto cercado por edifícios altos, com pista curta e fluxo intenso de passageiros, sobretudo após o crescimento econômico do Brasil, e o apagão aéreo que teve como estopim o desastre do voo Gol 1907, em 29 de setembro de 2006, no qual morreram 154 pessoas depois da colisão com um jato Embraer Legacy sobre o Estado de Mato Grosso.
A série detalha o acidente em Congonhas: mostra tanto os problemas na pista, que, após uma reforma, foi liberada sem o grooving — as ranhuras no pavimento asfáltico que visam melhorar a aderência dos pneus das aeronaves em condições de chuva ou poeira —, quanto o erro do piloto do avião, que não operou adequadamente os manetes (alavancas de controle dos motores). As imagens em vídeo que comparam a velocidade de um pouso normal com a da aterrissagem do TAM 3054 falam por si só.
E a série emociona ao entrevistar parentes das vítimas, bombeiros que atuaram no resgate do prédio da TAM e trabalhadores que sobreviveram à explosão. Entre os participantes, estão o pai da adolescente Thais, Dario Scott, que se tornou presidente da Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Voo TAM JJ 3054 (Afavitam), e Christophe Haddad, que se culpa pela morte da filha, Rebeca, 14 anos.

Carmen Caballero era a mãe de Maria Isabel, 14, e Júlia, 10, e filha de Elizabete, 65. Um advogado de Manaus, Ildercler Ponce de Leão viajou antes e acabou testemunhando o acidente em que perdeu a esposa, Jamille, e o filho, Levy, de apenas um ano e oito meses. Simone Felizardo, irmã de Paulo, conta que a mãe guardou durante muitos anos o celular que tinha a última mensagem enviada por ele: "Veinha, acabei minha missão. Estou voltando para casa". Simone comenta:
— Aquela mensagem, para ela, era... (a voz tremula). Era dizendo que ele estava indo embora mesmo.
Os depoimentos são entremeados por imagens do noticiário de TV da época que dão conta, por exemplo, da revolta dos familiares diante da espera pela lista oficial de passageiros do voo e da angústia diante da espera pela identificação dos corpos. O trabalho dos legistas, que em algumas situações tiveram de recorrer a exames de DNA, é elogiado pelos parentes das vítimas.
— A gente sabia que eram fragmentos, porque foram duas explosões, e os corpos ficaram horas em chamas — recorda Roberto Gomes, irmão do empresário Mario Gomes.
Em imagem de arquivo, Dario Scott dá entrevista sobre a comovente visita que um grupo de familiares pôde fazer ao Instituto Médico Legal (IML):
— Eu senti uma paz de falar realmente: "Olha, estão fazendo todo o possível". E a gente tem de aguardar.
A série também pode indignar. presidente da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos (Abrapavaa), Sandra Assali afirma que a direção da TAM não foi empática e acha inconcebível que o primeiro dos sete mandamentos de uma empresa de aviação não verse sobre a segurança dos passageiros — é "Nada substitui o lucro".

Um recorte de jornal chega a ser espantoso: três dias após a explosão do voo 3054, diretores da Anac foram condecorados com a medalha Santos Dumont. Muitos dos entrevistados reclamam da conduta da então diretora da agência reguladora, Denise Abreu, considerada "insensível" e "responsável pela tragédia".
No terceiro episódio, Angelo Defanti conversa com Denise:
— Você sabe que a maioria dos familiares te cita como uma das culpadas. Se você pudesse dizer alguma coisa para eles, o que diria?
A resposta não deixa de ter um fundo de razão, mas também dá mais munição para as queixas:
— Só posso lastimar que eles ainda não tenham compreendido que foram usados para se convencerem de que uma pessoa física fosse a culpada.
Outros depoimentos, como os de pilotos e peritos, justificam o subtítulo Tragédia Anunciada. E poderiam acender um alerta, conforme o diretor Angelo Defanti:
— Um acidente de avião é muito revelador. Há erros individuais nesse episódio, mas também decisões coletivas, incluindo a nossa postura em relação ao setor aéreo. Havia algo no ar antes do acidente de Congonhas. Há algo agora. Estamos vendo muitos pequenos incidentes que estão nos alertando para olharmos com mais calma para o setor. A série surge nesse momento, tentando levantar a guarda e manter um olhar crítico em relação a esse cenário.
Dá para citar pelo menos 11 acidentes e incidentes aéreos ocorridos no Brasil nos últimos quatro meses, que, no total, mataram 20 pessoas:
- Em 22 de dezembro de 2024, 10 pessoas da família Galeazzi morreram na queda de um avião Piper Cheyenne em Gramado.
- Em 9 de janeiro de 2025, uma aeronave de pequeno porte explodiu ao cair na praia do Cruzeiro, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. O piloto morreu.
- Em 16 de janeiro, um helicóptero caiu na em uma área de mata fechada na cidade de Caieiras, na Grande São Paulo. Um casal morreu.
- Em 7 de fevereiro, dois gaúchos, o piloto Gustavo Medeiros e o advogado Márcio Louzada Carpena, morreram quando o avião King Air caiu na Avenida Marquês de São Vicente, no bairro Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, ferindo também seis pessoas que estavam em um ponto de ônibus.
- Em 10 de fevereiro, uma pessoa morreu após um avião de pequeno porte cair e explodir em uma área de vegetação no município de Prado, no extremo sul da Bahia.
- Em 11 de fevereiro, um Boeing 737 Max 8 da Gol colidiu em um carro ao decolar na pista do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Ninguém ficou ferido.
- Em 15 de fevereiro, um avião de pequeno porte caiu em um canavial no município de Quadra, no interior de São Paulo, matando seus dois tripulantes.
- Em 20 de fevereiro, um Airbus A321 da Latam colidiu com pássaro durante decolagem e precisou fazer pouso de emergência no Galeão.
- Em 23 de fevereiro, foi a vez de um avião da Gol colidir com um pássaro ao decolar do Aeroporto de Brasília.
- Em 9 de março, um instrutor de voo morreu quando um Cessna 150J caiu na aldeia indígena Awa Porangawa Dju, em Peruíbe, no litoral de São Paulo.
- Em 28 de março, o piloto de um pequeno avião agrícola morreu quando a aeronave caiu entre Guaíra e Miguelópolis, no interior de São Paulo.
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