Os cinemas de Porto Alegre estão bastante tomados por três produções de Hollywood: o épico Gladiador II (que não vai ecoar na eternidade, como o primeiro, mas pelo menos não merece um polegar para baixo), a animação Moana 2 (muito bonita, mas totalmente esquecível) e o musical Wicked (bem cotado para o Oscar, mas que eu achei insuportável: fez Coringa: Delírio a Dois parecer uma delícia).
Os três melhores filmes em cartaz nas salas da Capital são sul-americanos. Um deles também pode ser visto em muitos endereços, que costumam estar lotados: quase 2 milhões de espectadores no país já assistiram a Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, o representante do Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar internacional.
Trata-se da cinebiografia de Eunice Paiva (1929-2018), que após o desaparecimento do marido, o engenheiro civil e deputado federal cassado Rubens Paiva, durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), é obrigada a se reinventar e traçar um novo destino para si e seus cinco filhos. A personagem é encarnada por Fernanda Torres, que pode aparecer entre as concorrentes da categoria de melhor atriz na premiação da Academia de Hollywood.
A segunda dica é de um filme que competiu no Oscar internacional e que também foi um fenômeno de bilheteria: o argentino Relatos Selvagens (2014), recordista de permanência no saudoso Cine Guion, em Porto Alegre — foram 37 semanas. O relançamento marca o aniversário de 10 anos do título. A exibição é apenas no GNC Moinhos, na sessão das 21h55min.
Dirigido por Damián Szifron, o filme é constituído por seis episódios independentes, um deles estrelado por Ricardo Darín, maior astro do país vizinho, protagonista do oscarizado O Segredo dos seus Olhos (2009) e de outros dois candidatos: O Filho da Noiva (2001) e Argentina, 1985 (2022). Ele faz um engenheiro especializado em implosões, mas que explode diante da burocracia e do pouco caso que os serviços públicos dispensam ao contribuinte. Entre os outros "relatos selvagens", um se passa em um avião, onde revela-se que todos os passageiros são desafetos do piloto, e outro em uma festa de casamento, onde a noiva descobre que o noivo é amante de uma das convidadas.
Por fim, recomendo muito outro longa-metragem brasileiro, que, como Ainda Estou Aqui, também é baseado em uma história real: Malu, em cartaz somente no CineBancários, às 17h, e na Cinemateca Capitólio, às 19h. É um filmaço sobre uma atriz decadente que vive às turras com a mãe e com a filha.
O diretor e roteirista Pedro Freire inspirou-se na vida de sua mãe, Malu Rocha, nome artístico de Maria de Lourdes Carvalho Carneiro (1947-2013). No Festival do Rio, em outubro, Malu conquistou cinco troféus Redentor: melhor longa de ficção (junto com Baby, de Marcelo Caetano), roteiro, atriz (Yara de Novaes) e atriz coadjuvante (prêmio duplo para Juliana Carneiro da Cunha, que faz a mãe da protagonista, e Carol Duarte, no papel de sua filha).
O filme se concentra em um período de ostracismo e aperto financeiro de Malu. Ambientado nos anos 1990, se passa quase todo em uma casa precária da zona oeste do Rio que a atriz sonhava transformar em um centro cultural, construindo um pequeno teatro acima do teto e abrindo uma loja de roupas e um café chamado Larica. Ela compartilha o lar com a mãe, dona Lili, e recebe a visita da filha, Joana, que seguiu a carreira artística de Malu e vem de uma temporada nos palcos de Paris.
Dá-se um choque violento — até fisicamente — de gerações, de personalidades, de ambições e de frustrações. Cada refeição familiar é como uma bomba-relógio que pode ser detonada por algo simples, tipo a presença de alho na comida.
Malu, que era uma jovem durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, é a transgressora do trio, a revolucionária sonhadora movida a maconha. Dona Lili, conservadora, chega a convocar um padre para tentar ajudar a filha. A protagonista senta-se ao lado do pároco no sofá e reage sem dó:
— Meu amigo, eu sempre ouvi dizer que comunista come criancinha. Mas eu descobri muito cedo na vida que quem come criancinha mesmo é padre.
Se a relação de Malu com a mãe é complicada, a dela com a filha é complicadíssima. Joana reclama do passado de negligência ("Passei a minha infância comendo arroz com salsicha porque a revolucionária não podia cozinhar, porque cozinhar era coisa de dona de casa") e acusa a mãe de abuso psicológico:
— Tudo o que você me falou, tudo o que você me fez, você fodeu com a minha cabeça!
Por sua vez, Malu nitidamente tem inveja do prestígio conquistado pela filha. Quando Joana lê uma crítica publicada na imprensa francesa, dá poucos ouvidos.
Apesar de todos os espinhos, há também carinho entre as três personagens. Na verdade, muitos dos conflitos nascem de um amor genuíno, de uma preocupação sincera. Brigas e rancores não anulam a possibilidade do abraço e da reconciliação — mesmo que pela via do sofrimento, mesmo que com ressalvas. Malu, o filme, ilustra o turbilhão emocional das relações familiares quando atravessadas pela passagem do tempo, com cada geração tendo de lidar com os diferentes ideais e valores e as diferentes dores e delícias da anterior e da seguinte.
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