Nenhum filme estreia nesta quinta-feira (2) no Guion Center. Na última semana dos seus 26 anos de funcionamento, a sala de cinema no bairro Cidade Baixa manterá em exibição quatro títulos que, de forma intencional ou não, e cada um a seu modo, simbolizam essa triste despedida de mais um espaço cultural de Porto Alegre.
Jogo do Poder, do veterano Costa-Gavras, 88 anos, reconstitui a crise econômica e política que derrubou a Grécia em 2015. Também foi uma crise econômica que forçou Carlos Schmidt, outro veterano do cinema (nasceu em 1953), a fechar as portas do Guion. Por causa da pandemia, as três salas não operaram de março a novembro do ano passado. Reabriram em novembro, mas em fevereiro o proprietário voltou a suspender as atividades, diante do recrudescimento da covid-19 e do adiamento das estreias de filmes. Nesse mesmo mês, colocou à venda o Guion, que retomou as exibições em maio — foi o primeiro na Capital a lançar Bela Vingança, por exemplo. Só que, como se observa em outros cinemas, o fluxo de público foi pequeno, tanto pelos receios sanitários quanto pela mudança de comportamento de muitos espectadores, atraídos pela segurança, pelo conforto e pelo preço do streaming.
Edifício Gagarine, dos franceses Fanny Liatard e Jérémy Trouilh, se passa em um conjunto habitacional erguido no sul de Paris, no início da década de 1960, cujo nome homenageia o astronauta russo Yuri Gagarin. Depois de anos de omissão do governo e da degradação da periferia, o prédio será demolido — o que aconteceu de verdade entre 2019 e 2020. A dona do centro comercial Nova Olaria, a empresa Dallasanta, não vai destruir as salas de cinema — pretende manter e reformar, com um novo operador, mas o nome Guion deve, como Gagarin, ir para o espaço.
O que nos leva ao terceiro filme em cartaz, o dos poloneses Malgorzata Szumowska e Michal Englert. Neste caso, a relação não é com a sinopse, mas com o próprio título: Nunca Mais Nevará. Nunca mais teremos o Guion.
Nunca mais teremos esse cinema que se notabilizou como alternativa aos filmes hollywoodianos, às comédias besteirol e aos super-heróis que dominam o circuito comercial.
Nunca mais teremos o Schmidt nos alertando sobre seus fenômenos de bilheteria: o italiano Vá Aonde seu Coração Mandar (1996) ficou 21 semanas em cartaz; dirigido pelo inglês Michael Radford, O Carteiro e o Poeta (1994) foi exibido durante seis meses; o japonês Dança Comigo? (1996) chegou a 27; o espanhol Tudo Sobre Minha Mãe (1999), de Pedro Almodóvar, estabeleceu o recorde de 32 semanas, depois batido pelo francês Piaf: Um Hino ao Amor (2007), com 33, pelo oscarizado argentino O Segredo dos seus Olhos (2009), com 35, e pelo também argentino Relatos Selvagens (2014), que chegou a 37.
Nunca mais teremos as idiossincrasias do proprietário, que durante muito tempo proibiu qualquer consumo de bebidas e alimentos nas poltronas, menos por questões de limpeza e mais por entender a sala de cinema como um lugar sagrado, onde o mínimo barulho prejudica a experiência cinematográfica.
Nunca mais teremos que telefonar para a bilheteria com medo de ficarmos sem ingresso para As Invasões Bárbaras (2003), do canadense Denys Arcand, ou O Tempero da Vida (2003), do grego Tassos Boulmetis.
Nunca mais teremos o Guion como um ponto de convergência da cultura porto-alegrense — era habitual encontrar por lá escritores, cineastas, artistas plásticos, atores, músicos etc, que depois ajudavam a difundir filmes como Adeus, Lênin (2003), do alemão Wolfgang Becker, e Elsa & Fred (2005), do argentino Marcos Carnevale.
Agora, só nos encontraremos no Guion de novo nos caminhos da memória. Que é justamente o título do policial sci-fi que completa a derradeira programação do cinema. Neste caso, a trama também reflete o estado de espírito de antigos frequentadores: a sinopse do Google diz que o protagonista de Caminhos da Memória, da diretora estadunidense Lisa Joy, é "um investigador particular da mente (papel de Hugh Jackman) que navega o mundo sombrio do passado ajudando seus clientes a acessar lembranças perdidas".
Adeus, Guion. Mas guarde um ingresso para as muitas sessões de nostalgia.