A sequência de abertura, que emula os ensandecidos desenhos animados da Warner das décadas de 1940 e 1950, com o protagonista enfrentando sua sombra homicida, é inesperada e promissora. Mas paradoxalmente, considerando os personagens principais, o ator oscarizado e a cantora pop que faz seu par romântico, como uma nova versão da Arlequina, falta loucura, falta imprevisibilidade e falta até espetáculo em Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux, 2024). Dirigido por Todd Phillips, o filme musical estrelado por Joaquin Phoenix e Lady Gaga tem sessões de pré-estreia nesta quarta-feira (2) e entra em cartaz na quinta (3) nos cinemas.
Falta também a ambição de transcender. Concorrente em 10 categorias do Oscar, incluindo melhor filme, direção e roteiro adaptado, Coringa (2019) foi um sucesso de público — arrecadou US$ 1,07 bilhão nas bilheterias — e de crítica também porque provocava debates. Seja na área da saúde mental, seja no campo sociopolítico, onde inclusive permitia interpretações opostas: uns consideraram alinhado à esquerda, outros, à direita.
Inevitável em uma Hollywood que vive de continuações, prólogos e franquias, Delírio a Dois parece se contentar em ir na contramão da obra original. Tanto na forma, ao misturar filme de prisão, musical e drama de tribunal (difícil decidir qual a parte menos interessante), quanto na desconstrução do protagonista, que tem questionada não sua sanidade, mas sua insanidade (talvez o aspecto mais interessante, aludindo à natureza maleável do personagem Coringa, com origem, motivações e personalidade fluidas; um curinga, uma carta capaz de mudar as regras do jogo a qualquer instante, de estampar os demônios e fantasmas de cada contexto histórico e de embaralhar sua própria história). Parece se contentar em ser um entretenimento — não à toa, uma das canções mais evocadas é That's Entertainment, de A Roda da Fortuna (1953) —, cheio de cenas para bombar na efemeridade do Instagram ou do TikTok, ainda que seja capaz de suscitar leituras bonitas, como a do crítico e professor Marcelo Müller: "Não é sobre o Coringa incendiário prometido no fim do primeiro filme, mas sobre um homem frágil que não suporta o peso da simbologia que imputaram a ele. Um homem que sofre e escapa à fantasia por meio dos musicais, que tenta dourar uma existência fadada à tragédia com promessas de amor cantadas de modo romântico e exuberante".
Em Delírio a Dois, Todd Phillips reúne quase a mesma equipe de Coringa. Novamente, o roteiro foi escrito por ele com Scott Silver. A direção de fotografia é de Lawrence Sher, a edição, de Jeff Groth, o design de produção, de Mark Friedberg, e a música, da oscarizada Hildur Guðnadóttir. No elenco, além do também premiado no Oscar Joaquin Phoenix — outra vez magérrimo, fazendo de seu corpo e de seu rosto retratos da mente contorcida de seu personagem —, estão de volta Zazie Beetz, a vizinha Sophie, com quem Arthur Fleck fantasiava um romance, Sharon Washington, a assistente social, e Leigh Gill, o anão poupado da carnificina.
A trama se passa alguns anos após os eventos narrados em Coringa. Arthur Fleck está preso no Asilo Arkham. Do lado de fora, o promotor Harvey Dent (papel de Harry Lawtey), em busca dos holofotes da mídia, quer levar o protagonista ao "julgamento do século": deseja condená-lo à pena de morte pelos cinco assassinatos cometidos no primeiro filme, incluindo o do apresentador de talk show Murray Franklin (papel de Robert De Niro), ao vivo e em rede nacional.
No Arkham, o carcereiro Jackie Sullivan (Brendan Gleeson) caçoa de Arthur: "Todo mundo ainda acha que você é um astro". Bem, pelo menos uma pessoa é realmente fanática por ele: Lee Quinzel, a personagem vivida por Lady Gaga que ele conhece durante a terapia musical, uma encarnação cinematográfica bem diferente da Arlequina interpretada por Margot Robbie.
Diante do pendor do protagonista à ilusão e à alienação, do cenário opressivo e do contexto sinistro, faz todo sentido que o filme logo recorra aos musicais. É como um mecanismo de fuga ou de sublimação, a exemplo do que o cineasta dinamarquês Lars von Trier ofereceu em Dançando no Escuro (2000) à operária quase cega que, enquanto luta para custear a cirurgia do filho, acaba demitida e acusada injustamente de roubo. É uma fantasia que ocorre dentro da mente de Arthur Fleck, embora os números de canto e dança também sejam usados para simplesmente ilustrar a narrativa.
O que prejudica Delírio a Dois é a falta de audácia. Em alguns pontos, isso é até justificado. Não espere, por exemplo, o anacronismo de Moulin Rouge! (2001), que transpôs para a Paris de 1899 canções de Elton John, Nirvana e Fatboy Slim. Ambientado na virada dos anos 1970 para os 1980 — lembre-se que Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), ambos de Martin Scorsese, são as inspirações do primeiro Coringa —, o filme lança mão de canções antigas da Broadway, como Bewitched, Bothered and Bewildered (1940) e If my Friends Could See me Now (1966), que parecem refletir o acesso do protagonista a suas memórias.
Em outros pontos, porém, as escolhas estéticas de Todd Phillips jogam bastante contra. Talvez para não ofuscar o temperamental Joaquin Phoenix, Lady Gaga, que disputou o Oscar de melhor atriz por Nasce uma Estrela (2018), está subaproveitada, contida demais. Sua Arlequina não chega a ter uma vida própria, é vista somente pelo olhar de Arthur Fleck — ou seja, este não é exatamente um delírio a dois.
Já as coreografias carecem de criatividade, de modo que os números musicais jamais contagiam o espectador. Também nunca o espantam, como no já citado Dançando no Escuro ou em Anette (2021), de Leos Carax, para mencionar dois filmes que ousaram adotar o gênero para tratar de assuntos pesados. Aos poucos, as sequências de canto e dança tornam-se monótonas, repetitivas, quase inúteis — como se fossem meros intervalos da trama — e previsíveis. Aliás, até o caos que a certa altura se instala é comportado. E até o final supostamente chocante é telegrafado. Podemos antever mesmo o que acontece fora de foco ao fundo da cena.
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