A editora Pipoca & Nanquim está lançando no Brasil uma nova e luxuosa edição de O Eternauta, história em quadrinhos argentina escrita por Héctor Germán Oesterheld (1919-1977) e desenhada por Francisco Solano López (1928-2011) que virou série da Netflix estrelada por Ricardo Darín e com estreia prevista para 2025.
Publicado na Argentina entre 1957 e 1959, na revista Hora Cero Semanal, este clássico da ficção científica apocalíptica com leitura sociopolítica retorna ao mercado brasileiro em uma edição de formato widescreen, respeitando a orientação da obra original, e com uma luva protetora para conservar o livro em pé nas prateleiras. A capa é dura e diagramada com um buraco na arte do icônico capacete usado pelo protagonista da HQ. Segundo a editora, pela primeira vez no país as 372 páginas foram impressas com arquivos de alta definição. Um prefácio do pesquisador porto-alegrense Rafael Machado Costa dimensiona a importância, contextualiza seu surgimento e explica a longevidade de O Eternauta (leia entrevista logo abaixo), que tem tradução de Letícia Ribeiro Carvalho. O preço do volume é R$ 219,90.
A trama está ambientada na Buenos Aires do final dos anos 1950. Um escritor de quadrinhos recebe a visita de um sujeito chamado Juan Salvo, que afirma ter vindo do futuro e o alerta sobre uma tragédia iminente. Ele narra a história de uma fria noite de inverno, na qual seu grupo de amigos teve a habitual partida de truco interrompida por uma misteriosa nevasca fluorescente e tóxica, capaz de matar tudo o que toca. Logo descobrem que estão sob uma devastadora invasão alienígena.
O protagonista não é o típico herói do gênero: politicamente alinhado à esquerda, Oesterheld propõe um heroísmo coletivo, em oposição ao individualismo do sistema capitalista. O impacto da mensagem de resistência e das críticas ao imperialismo e militarismo foi tão grande, que até hoje se veem, desenhadas nos muros da Argentina, imagens de Juan Salvo em seu famoso traje de proteção.
Em 1969, o roteirista lançou uma nova versão do quadrinho, agora com desenhos de Alberto Breccia, na qual os extraterrestres aludem mais claramente ao regime militar instaurado na Argentina em 1966 (essa HQ saiu no Brasil pela editora Comix Zone, em 2020). Em 1976, no ano em que começou uma outra ditadura no país, Oesterheld voltou a fazer parceria com López em O Eternauta II _ que também será lançada por aqui pela Pipoca & Nanquim, em 2025.
A minissérie da Netflix terá, em princípio, seis episódios, com direção de Bruno Stagnaro. O elenco, além de Darín, maior nome do cinema argentino — atuou em quatro filmes indicados ao Oscar internacional: O Filho da Noiva (2001), o premiado O Segredo dos seus Olhos (2009), Relatos Selvagens (2014) e Argentina, 1985 (2022) —, inclui Carla Peterson, o uruguaio César Troncoso e Marcelo Subiotto. Martín M. Oesterheld, neto do quadrinista, foi consultor criativo do roteiro assinado por Stagnaro e Ariel Staltari. A produção é da K&S FILMS, que tem no currículo os longas Relatos Selvagens, O Clã (2015) e A Odisseia dos Tontos (2019) e a série Vosso Reino (2021-2023).
Por que "O Eternauta" é eterno
O prefácio da nova edição brasileira de O Eternauta é assinado por Rafael Machado Costa, 40 anos, porto-alegrense que é bacharel em História da Arte pela UFRGS e bacharel em Direito pela UniRitter, com mestrado e doutorado em História, Teoria e Crítica de Arte. Ele tem um canal no YouTube, o Ilha Kaijuu, no qual publica vídeos sobre quadrinhos (especialmente mangás), filmes e outras obras da cultura pop. Confira a entrevista concedida por e-mail:
Na introdução de O Eternauta, tu escreves sobre as relações do quadrinho com duas obras literárias que são opostas no seu retrato da humanidade: Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, e O Senhor das Moscas (1954), de William Golding. Para o leitor que ainda não teve acesso ao texto, podes resumir essas relações?
Robinson Crusoé conta a história de um inglês que se torna marinheiro e faz várias viagens, no contexto das grandes navegações, e passa por dificuldades como uma série de naufrágios e ataques piratas. Em um naufrágio, Crusoé fica isolado em uma ilha e precisa sobreviver com os recursos que tem em suas mãos, transformando o lugar no seu lar. O próprio Oesterheld mais de uma vez afirmou que partiu de Robinson Crusoé para criar o conceito inicial de O Eternauta: um protagonista isolado da civilização em uma situação de perigo tentando sobreviver com os poucos recursos que encontra. Já O Senhor das Moscas também apresenta uma história de pessoas presas em uma ilha, após um acidente aéreo. Mas, no caso da história de Golding, trata-se de um grupo de meninos de uma escola sem que nenhum dos adultos que os supervisionavam tenha sobrevivido ao acidente. Apesar das histórias de Defoe e Golding partirem de uma premissa parecida, o discurso delas é oposto. Em Robinson Crusoé, o sobrevivente isolado é mostrado como alguém capaz de dar o seu melhor para moldar o ambiente selvagem e organizá-lo fazendo dele um lugar bom. Em O Senhor das Moscas, o ambiente selvagem em que não há organização social e punição para atos violentos faz com que as crianças se tornem mais cruéis e violentas umas contra as outras. No primeiro caso, o ser humano é bom e racional e pode levar sua bondade e racionalidade para um ambiente "selvagem" e influenciá-lo de forma positiva, ajudando outras pessoas que encontre por lá. No segundo, o ser humano é em essência mau e egoísta e só não comete crimes por medo da punição das leis. Uma vez levado a um lugar onde as leis e autoridades não existem, nada o impede de manifestar essa maldade e egoísmo. Em O Eternauta, os autores colocam os personagens em uma situação parecida de isolamento e fragmentação da sociedade e discutem na obra esses dois possíveis efeitos causados nas pessoas por estarem em um ambiente em que a organização social entra em colapso.
Por que O Eternauta se cristalizou como um clássico? O que tu apontas como principais virtudes desta história em quadrinhos? Por que estamos sempre voltando à obra de Oesterheld e Solano López?
O Eternauta é uma história em quadrinhos que apresenta uma aventura cheia de ação com temática de ficção científica. Essa trama fantástica com elementos de mistério já é algo que provoca a curiosidade. Soma-se a isso o fato de ser uma HQ produzida na Argentina, que traz uma série de contextos que permitem uma sensação de reconhecimento maior dos leitores, não só de seu país de origem, como de toda a América do Sul. Daí têm todas as alegorias presentes na obra para representar de forma indireta as lutas políticas latino-americanas contra regimes autoritários e injustiças. Mais a forma como os autores constroem seus personagens, que parecem reagir e se emocionar como pessoas reais fariam em situações parecidas. O Eternauta tem muitas camadas de leitura e, apesar de todo o tom fantástico, trata de temas que dizem respeito à cultura latino-americana. É uma daquelas obras que marcam o leitor e fazem com que ele não seja exatamente a mesma pessoa depois de terminar de lê-la.
Oesterheld foi combativo na arte (também com Breccia, assinou biografias de Che Guevara e Evita Perón) e na vida: filiado ao grupo guerrilheiro Montoneros, em 1977 acabou sequestrado, junto a suas quatro filhas e três de seus genros, pelas forças armadas. Seus corpos nunca foram encontrados. O destino trágico do roteirista e de seus familiares aumentou o impacto de O Eternauta, certo? E, de certa forma, comprova ser falsa a possibilidade de separação entre o artista e a obra, não é?
As discussões teóricas sobre separação entre artista e obra tratam da autonomia da produção artística e cultural em relação à pessoa que a produziu depois que esta obra é colocada no mundo. No sentido de o leitor não precisar perguntar ao autor o significado de cada elemento da obra. Inclusive, que a obra pode ser levada para um outro contexto geográfico ou temporal e lá ganhar um novo significado que não era o pretendido e pelo autor, mas que é muito significativo e coerente neste novo local, e que estes novos sentidos para a obra são tão legítimos quanto aqueles sentidos que o autor tinha a intenção que a obra tivesse. No caso de O Eternauta, ele não nega a teoria da autonomia da obra em relação ao artista. O Eternauta tem, sim, um sentido muito vinculado à vida dos autores e ao contexto histórico e social em que foi produzida, e conhecer este contexto pode enriquecer a experiência de leitura. Mas não impede que a obra seja lida por uma pessoa que não sabe quem são Oesterheld e Solano López e que está em outro país e em outra época muito longe da Argentina do século 20 e, ainda assim, pode ser impactada pela obra e estabelecer relações entre ela e seu próprio contexto social. Levando a forma como os autores usaram alegorias da ficção científica para falar de acontecimentos concretos de sua sociedade, acredito que eles ficariam satisfeitos se soubessem que sua HQ pode tocar pessoas de outras culturas.
É difícil especular, mas, se Oesterheld escrevesse O Eternauta hoje, ele ainda seria otimista quanto à coletividade, ao heroísmo em grupo?
Acredito fortemente que sim. As três versões de O Eternauta (a original de 1957 a 1959, o remake de 1969 e a sequência de 1976) foram produzidas enquanto a Argentina passava por três diferentes momentos de governos autoritários com projetos econômicos que favoreciam a concentração de renda para poucas pessoas em detrimento da maior parte da população do país. Nos três momentos, Oesterheld contou histórias de O Eternauta para denunciar o que ele achava que era errado e propor um mundo em que pessoas superavam suas diferenças em razão de um bem comum. Se Oesterheld estivesse vivo hoje, acho que ainda acreditaria no potencial da ação coletiva humana e estaria escrevendo uma nova versão de O Eternauta para falar sobre a Argentina da atualidade.
À luz dos dias de hoje e das características da produção audiovisual contemporânea, o que se pode esperar da adaptação de O Eternauta como série da Netflix? Quais são as tuas expectativas? Há algum temor?
A obra original de Oesterheld e Solano López é rica o suficiente para propiciar muito potencial para adaptações para outras mídias. E a Argentina tem uma forte tradição em produções audiovisuais de qualidade. A grande questão é se a adaptação manterá o tom crítico com discussões políticas e sociais da obra original ou se optará por ser uma obra mais genérica, dando foco para a aventura e o mistério fantástico, alienando estes temas do contexto social e político dos quais são alegorias e sobre os quais os autores queriam discutir.
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