Começa nesta sexta-feira (14) e vai até domingo (16) a Feira do Livro Reconstrói RS, dedicada a apoiar editoras, autores e livreiros do Rio Grande do Sul afetados pelas enchentes. Aberta das 11h às 20h, com entrada franca, a mostra vai ocupar todos os espaços do Instituto Ling, em Porto Alegre (Rua João Caetano, 440). Haverá cerca de 40 bancas, e a programação inclui palestras, debates (como o bate-papo online das escritoras Martha Medeiros e Carla Madeira), lançamentos de livros, sessões de autógrafos, shows musicais e atividades infantis.
As histórias em quadrinhos não ficaram de fora. Na sexta, às 17h, participarei de uma conversa com o editor Fabiano Denardin e o pesquisador Augusto Paim sobre a produção gaúcha. Entre os expositores, estão a Brasa Editora, que tem em seu catálogo a premiadíssima Brega Story, do mineiro radicado no Pará Gidalti Jr., e a elogiadíssima Damasco, do paranaense Lielson Zeni com o carioca Alexandre Lourenço, e a Editora Hipotética, que nasceu em 2022 com Um Lugar do Caralho, de Thiago Krening, já esgotado.
Aqui na coluna, vou dar quatro dicas de HQs que poderão ser compradas no Ling, uma de cada editora e todas com autores do RS.
A Tragédia da Rua da Praia (2011)
De Rafael Guimaraens e Edgar Vasques. É a versão em quadrinhos do romance publicado em 2005 pelo jornalista e escritor Guimaraens, autor de A Enchente de 41 (que acabou de ganhar uma reimpressão) e de outros livros sobre a história de Porto Alegre. Aqui, a dupla relata um episódio real ocorrido em setembro de 1911. Assim descreveu meu colega Leandro Staudt em sua coluna em GZH, em 2022, no lançamento da segunda edição da HQ: "Encontramos personagens que hoje são nome de vias da Capital, como Borges de Medeiros, Mário Cinco Paus, Octávio Rocha, Leonardo Truda e José Montaury. É um mergulho na cidade do início do século 20".
Na trama desenhada por Vasques, quatro misteriosos estrangeiros assaltam uma casa de câmbio na Rua da Praia e se envolvem em uma fuga enlouquecida pelo Centro Histórico, a pé, de carruagem, de bonde e até a bordo de uma carrocinha de leiteiro. O caso suscita pânico na população, disputas políticas e guerra de versões entre os jornais. Enquanto os ladrões são perseguidos, dois empresários produzem um filme que irá estrear 10 dias depois, em quatro sessões diárias no Cine-Theatro Coliseu. (Libretos Editora, R$ 50)
Lovistori (2021)
De Lobo e Alcimar Frazão. A trama se passa no mesmo universo de Copacabana (2009), HQ que o roteirista porto-alegrense Lobo fez com o artista pelotense Odyr nos tempos em que morava no Rio (viveu lá de 1989 até 2012). "Sou fascinado pelo mundo da prostituição, é um ambiente rico. Muita coisa acontece na noite. Gosto de ficar observando, tomando minha cerveja, fumando meu charuto vagabundo. O que sobrevivia à ressaca era o que eu escrevia", contou Lobo em entrevista para mim em 2022.
Em Lovistori, ele e o paulista Alcimar Frazão acompanham o dia das "bodas de travesseiro" do casal formado por Paixão e Sereia — os nomes são extremamente simbólicos. Ele é policial militar; ela, travesti que se prostitui nas calçadas de Copacabana. Enquanto o primeiro canta Oh Happy Day, o traço maciço e em preto e branco de alto contraste da arte acende um sinal de alerta: estamos num território onde homens não assumem o amor por uma travesti, como aponta Monique Prada, escritora de Putafeminista (2018), em texto publicado ao final da história; estamos num mundo onde preconceito, decepção, marginalidade, prostituição, desafetos e morte são palavras que circundam o corpo de pessoas trans, como diz, em outro posfácio, Priscila Fróes, artista visual e também "putafeminista".
— Monique e Priscila foram fundamentais na construção de Lovistori, porque a nossa condição de homens cis e heterossexuais era um telhado de vidro — comentou Lobo. — As colocações que elas fizeram acabaram por definir novos rumos para a história. O final original era diferente. (Brasa Editora, R$ 79,90)
Almoço: Uma Conversa com Eliane Brum (2022)
De Pablito Aguiar. Reúne dois contadores de histórias — mas antes de tudo escutadores de histórias, dessas que são narradas pelas pessoas ditas comuns, mas na verdade sempre singulares. Quadrinista de Alvorada e autor de Conversas em Porto Alegre, Pablito viajou para Altamira, no Pará, onde a jornalista nascida em Ijuí mora já há quase sete anos. Como conta em Almoço, Eliane entendeu que, se considera a Amazônia o centro do mundo, precisava "fazer esse movimento de corpo", passando a viver por lá, para ajudar a combater na "guerra climática contra a minoria dominante que destrói o planeta", lutando junto de lideranças indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas.
Através do desenho de traços simples mas afetuosos de Pablito, com um olhar para detalhes — o descascar de um dente de alho, o colorido de um jogo de azulejos —, visitamos a casa no meio da mata de Eliane e seu companheiro, o inglês Jonathan Watts. O papo se dá enquanto ela cozinha feijão, o que constitui "um tipo de bruxaria, um momento de internalidade, um ritual". Quem nos recepciona em Altamira são os cachorros Flora, Babaju e Frida (em homenagem a Frida Kahlo). Virando a página, será a vez de conhecer os gatos: Bentinho, Capitu, Florêncio e Dorothy — os dois primeiros têm os nomes dos personagens do romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis; os dois seguintes são possíveis referências a Florêncio Vaz e Dorothy Stang. Ele é um indígena do povo Maytapu que se tornou antropólogo, professor, frei franciscano e ativista. Ela foi uma religiosa estadunidense naturalizada brasileira assassinada em 2005 em Anapu, no Pará, a mando de um fazendeiro.
Digo "são possíveis" porque, embora a HQ tenha surgido de um diálogo, Pablito adota uma política de não interferir no monólogo de Eliane. Apesar de curto, Almoço oferece momentos de densidade e profundidade. Quando Eliane afirma que tem muita ternura pelas pessoas que abrem as portas de suas casas para ela (e mesmo que a pessoa more na rua, "a gente bate na porta"), diz que outro ingrediente essencial na receita de seu trabalho é a raiva: "Porque eu faço um jornalismo de luta, né? Não ódio. Ódio é uma coisa que mata a gente por dentro. Eu não tenho ódio, eu tenho raiva. (...) Bom, se eu não posso botar fogo, então escrever foi essa maneira. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar". (Arquipélago Editorial, R$ 49,90)
Sobreviventes da Fronteira (2023)
De Fred Rubim. Esta eu ainda não li, mas recomendo por ser de Rubim, o produtivo artista de obras como O Coração do Cão Negro (em parceria com Cesar Alcázar), Le Chevalier: Arquivos Secretos (com André Cordenonsi), O Matrimônio de Céu & Inferno (com Enéias Tavares) e Os Sussurros do Caos Rastejante (com Fábio Yabu). Sobreviventes da Fronteira marca sua estreia como roteirista, a partir de um argumento criado por ele e por Fabiano Denardin. Baseado nas memórias de Fred, tem como protagonista o jovem João Ramiro, um raro fã de Ramones entre o grupo de colegas que curte muito pagode e vanerão. Ele parte em uma aventura para assistir ao último show da banda estadunidense de rock em Buenos Aires, em 1996, na companhia de seu único grande amigo, Matias, e de Magrão, que topa encarar a longa viagem de carro porque quer visitar Albertina, "una chica punk rocker" que vive do outro lado da fronteira.
No prefácio da publicação, o músico e compositor Frank Jorge diz que "pode soar clichê dizer que isto ou aquilo é super rock'n'roll, mas sair de carro com amigos para uma jornada como esta, cheia de percalços e incertezas, é puro rock'n'roll, é puro punk rock". (Editora Hipotética, R$ 45)