No prefácio da primeira edição de Rango, publicado em agosto de 1974, o escritor Erico Verissimo recomendou o livro com muito entusiasmo: “Eis um humorista em que anedota e traço são da melhor qualidade. Edgar Vasques é um caricaturista de primeira ordem (...) Faz no reino do humorismo o que Josué de Castro fez no da sociologia, isto é, chama a atenção do mundo para o trágico problema dos famintos (...) Recusando a alienação, combate a miséria com as grandes e nobres armas de que dispõe: pena, tinta, espírito de solidariedade humana... e talento”.
A empolgação de Erico ganharia eco na 20ª Feira do Livro de Porto Alegre, de 1974, na qual Rango 1 foi o campeão de vendas. Era a afirmação de Edgar Vasques em seu sexto ano de trajetória. Em 2018, o desenhista celebra 50 anos de carreira com o 17º livro do personagem Rango. Intitulado Crocodilagem – O Brasil Visto de Baixo (L&PM Editores), a compilação reúne 144 tiras que foram publicadas mensalmente no jornal Extraclasse, do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro), entre 2007 e 2018 – também há quadrinhos inéditos. O livro será lançado neste sábado (25), no 45° Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP), que também receberá a exposição Edgar Vasques (1968/2018) – 50 Anos Pendurado no Pincel. No dia 1º, a partir das 14h, Crocodilagem será lançado na Galeria Hipotética, em Porto Alegre, acompanhado de uma mostra com os desenhos originais do livro.
TIRAS DO RANGO
Nascido em Porto Alegre em 5 de outubro de 1949, Edgar é o mais velho de seis irmãos. Filho do funcionário público Hélio e da professora Belchis, ele se criou no Centro, que era o seu grande playground – das escaladas na torre da Igreja das Dores aos banhos no Guaíba. A vocação para a arte se manifestou bem cedo, tanto que sua mãe guardou desenhos que ele fez ao três anos, como “uma Lassie”. Aos 14, teve sua primeira publicação remunerada: uma ilustração de capa para o calendário de jogos do Campeonato Gaúcho.
– Simplesmente desenhava desde criança, como todo mundo, só que o desenhista não para. Normalmente quando as pessoas se alfabetizam, ou depois, na adolescência, vão abandonando a linguagem gráfica em favor da linguagem do texto. Para alguns, isso não basta. Esses são os desenhistas – define Edgar.
A carreira começou mesmo em 1968. Seu avô materno, Carlos Alfredo Simch, morrera em 1967 e deixara no testamento um dinheiro reservado para o neto viajar para a Europa. Simch era médico e farmacêutico, mas também atuou na política – foi prefeito de São Jerônimo e senador da República. Para o avô de Edgar, um artista precisava ir ao Velho Continente para se desenvolver. Com a herança, o neto visitou Lisboa, Madri e Roma, mas o que lhe impactou foi Paris às vésperas dos protestos de maio de 1968.
– Estive em Paris em fevereiro de 1968. Imagina uma panela de pressão, perto de explodir, e ali estava um guri do centro de Porto Alegre, que nunca tinha viajado. Foi um momento bem interessante – destaca.
Durante a viagem, Edgar registrava o que via em um caderno de desenho, dado por sua mãe. Transpor para o papel as pessoas e os espaços que atiçam sua percepção é um hábito da infância que persiste. Em seus blocos, ganham formas sujeitos em bares, prédios, reuniões etc. Quando voltou a Porto Alegre, os desenhos que Edgar fez na Europa foram publicados no Correio do Povo. A partir daí, ele passou a ser colaborador do jornal.
Ainda em 1968, Edgar foi aprovado na UFRGS nos cursos de Artes e Arquitetura. No começo, tentou conciliar as duas graduações, mas logo ficou só na Arquitetura, apesar de não ter muito a ver com suas ambições profissionais.
– Dificilmente na época se considerava que a charge ou o cartum eram uma profissão. Existia uma cultura de que isso era coisa de engraçadinho, uma coisa menor, que não constituía um meio para o sujeito ganhar a vida. Muita gente que desenhava ou tinha essa vocação acabava no curso de Arquitetura. Era o mais parecido com a ideia de ter o desenho como profissão – explica o desenhista, que é arquiteto formado, apesar de nunca ter atuado na área.
A Arquitetura da UFRGS era um caldeirão cultural, que influenciou seus vieses intelectual e político. Ali surgiu o Rango, até hoje seu mais conhecido personagem. Publicado pela primeira vez em 1970, na revista Grillus (editada pelo diretório acadêmico da Arquitetura), Rango é um morador de um lixão, sempre faminto, ora uma metáfora da sociedade de consumo, ora uma representação dos excluídos.
– Eu via a miséria na rua. Durante o trajeto para a faculdade, pelo Centro Histórico, pensava nisso, juntando dois mais dois. Como é que tem tanta miséria na rua e a imprensa não fala nada? Na época, a imprensa vivia sob censura e o papo era ufanista, aquela coisa do “Brasil para a frente”, que não batia com a realidade. Aquilo criou uma contradição na minha cabeça e, quando botei no papel, surgiu o Rango. Ou seja, do que adianta toda essa euforia se o problema mais básico, que é ter o que comer, não foi resolvido? Não é possível ser feliz enquanto os outros passam fome. Esse mote, palavra de ordem, me acompanha até hoje – relata.
PRIMEIRA COLETÂNEA DO RANGO
Após sua estreia, Rango só voltaria a ser publicado em 1973, pela Folha da Manhã, quando Edgar substituiu Luis Fernando Verissimo em suas férias.
– Não tive nada a ver com a escolha do substituto, mas me orgulho dessa minha pequena participação na biografia do Rango – comenta Verissimo. – As tiras são seríssimas e engraçadíssimas, sem que uma intenção anule a outra.
Edgar se define assim:
– Não sou um humorista gráfico; sou um desenhista. Meu humor não é cômico; é crítico e irônico. Pega as tiras do Rango: raramente você vai rir ou gargalhar.
A resposta dos leitores do jornal foi positiva, e o personagem se consolidou. Desde então, Rango permanece na ativa, sem previsão de aposentadoria.
– Comecei a aprofundar a questão, as causas, a estrutura que não muda, a estrutura excludente, que não distribui a renda. Se tu pinçares cinco histórias de cada década, verás que o Rango se aprofundou, não é mais só falar que o estômago ronca, agora busco onde está a causa daquele mal. Rango virou uma clínica geral da miséria – diz Edgar.
Prazer e consciência
Depois da Folha da Manhã, Edgar passou a atuar no Coojornal e também começou a publicar n’O Pasquim. Em meio à ditadura, suas tiras ácidas estavam na mira dos militares, tanto que foi interrogado em duas ocasiões.
– A censura te obriga a driblá-la e, consequentemente, isso despotencializa teu discurso, por exemplo, trocando “Brasil” por “país” em uma piada. Era o zagueiro que te dava paulada. Tinha que driblar e seguir em frente – avalia.
Para Edgar, a linguagem do humor pode ser uma arma poderosa:
– O humor promete o prazer e entrega a consciência. Tem o humor que pega no pé de quem tem que pegar, de quem está roubando. Humor é moralista. Quer que as coisas fiquem certas. Não perdoa o cara que está sacaneando ou mentindo. Também pode servir para aborrecer, existe um humor retrógrado que reforça preconceito, que goza o português, a sogra, o negro, o homossexual. É um humor reacionário, que mantém as coisas como estão, inclusive as erradas, principalmente.
ANALISTA DE BAGÉ
Em 1983, os caminhos de Edgar e Verissimo voltaram a se cruzar, na adaptação de O Analista de Bagé para os quadrinhos, em álbum da L&PM e na revista Playboy.
– A criação visual do Vasques é metade do Analista de Bagé. Verissimo tem um texto primoroso, denso, curto, mas o Edgar consegue pegar esse texto, que tem uma página ou duas, e transformá-lo em um desenho. Está tudo ali – aponta Susana Gastal, jornalista e organizadora do livro Edgar Vasques – Desenhista Crônico (2013).
Para ilustrar o Analista, Edgar aprendeu a trabalhar com aquarela. A versatilidade é uma característica, sublinha o colega de ofício Santiago:
– É um artista multifacetado. Poucos desenhistas dominam os quadrinhos, o cartum, a charge, a caricatura, a ilustração e a aquarela como ele.
Susana corrobora:
– Ele reúne várias qualidades. Por exemplo, muitas vezes há um chargista que tem sacadas excelentes, ou que tem uma sacada social excelente, mas o traço é fraquinho e o acabamento do desenho, frágil. Com Edgar, não, ele tem a sacada, o recorte preciso da situação e o tratamento pictórico maravilhoso. Ele tem domínio da tinta, da cor, da composição.
PAISAGEM EM AQUARELA
Professora do Instituto de Artes da UFRGS, Ana Albani de Carvalho destaca o poder de síntese:
– Com poucas linhas, ele confere uma dimensão de expressão. Com poucos traços, te passa uma ideia e expressa um sentimento.
Santiago chama a atenção para o traço dramático de Edgar:
– É um desenho que você nunca vai poder dizer que é leve. É forte, incisivo. Ele usa muito as hachuras, uma técnica muito difícil que vem lá dos gravuristas, do início da imprensa, da Renascença. Como domina bem isso, consegue dar um peso de denúncia.
Joaquim da Fonseca, também artista gráfico e aquarelista, elogia o talento de Edgar para a caricatura:
– Ele sabe representar uma pessoa com muita fidelidade. Caricatura é a forma mais verdadeira de representação de uma pessoa, pois mostra como os outros veem o sujeito.
LOGOMARCA DO DMLU
Ao longo dos anos, ele explorou sua versatilidade em diferentes frentes. Converteu em álbum de HQs o espetáculo Tangos & Tragédias (em 1990). Adaptou o clássico Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, para os quadrinhos (em 2009). De 1994 a 2004, trabalhando na prefeitura de Porto Alegre, criou símbolos e logomarcas da Capital. No momento, além das tiras no jornal Extra Classe, leva a cabo um projeto com o escritor Alcy Cheuiche sobre Anita Garibaldi. Porém, apesar das cinco décadas pendurado no pincel, ressalta que cada dia constitui uma luta diferente.
– Tenho uma aposentadoria de um salário mínimo que é meu único rendimento seguro. O resto é “freela”. Meus 50 anos são de resistência profissional – sintetiza o artista.