Verissimo tem tiradas para todo um dicionário, "do abacaxi ao zodíaco", como diz o texto de apresentação do livro Ver!ssimas (Objetiva, 2016), que reúne algumas de suas frases e desenhos. Mas é curioso como suas opiniões só aparecem se o escritor se dignar a escrevê-las: entre as coisas incríveis que já vivenciou, por exemplo, está ter testemunhado por acaso, em um passeio por Roma, à filmagem de uma das cenas mais clássicas da história do cinema: o banho de Anita Ekberg na Fontana de Trevi em A doce vida, de Federico Fellini. Torcedor colorado, Verissimo se tornou amigo do ídolo Elias Figueroa, que visitava a sua casa para jogarem pebolim. Em 2002, passada a eleição presidencial, o eleito Lula pediu a Tarso Genro e a Marco Aurélio Garcia que o levassem a uma visita a Verissimo, para que pudesse conhecê-lo e agradecer pelo apoio. Mas mesmo se perguntado diretamente, nada de inusitado saberemos sobre nenhum desses episódios a não ser que ele, um dia, resolva escrever sobre eles.
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Palpites, então, não saem da boca do autor por nada. Tarso conta que tentou, por exemplo, contar com a colaboração de Verissimo para a elaborar seu projeto de governo para a Cultura, em 2010. O amigo pareceu empolgado. Inclusive emprestou a casa para um debate com intelectuais da área. Mas enquanto as propostas pipocavam, ficava quieto. Até que o então candidato ao Piratini provocou:
– E tu, Luis Fernando? O que tu achas?
– Eu acho que nós vamos ganhar.
Certamente teria algo divertido a dizer caso viesse a escrever, por exemplo, sobre a homenagem que o aguarda em Bagé, assim que o escritor estiver bem para encarar uma viagem à cidade-berço do seu personagem mais famoso. A ideia surgiu no ano passado, quando a então estagiária de turismo Bruna Carvalho Antunes trabalhava no Centro de Atendimento ao Turista e foi visitada por um casal de Porto Alegre:
– Eles me perguntaram onde ficava o consultório do Analista de Bagé. Fiquei meio constrangida de dizer que o lugar não existia. Mas pensei que bem que poderia, né?
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Bruna transformou a ideia em seu trabalho de conclusão de curso, e a iniciativa foi adotada com entusiasmo pelo Senac e pela prefeitura. Não será propriamente um consultório como o retratado nas crônicas da década de 1980 – com o pelego fazendo as vezes de divã e Freud esculpido em um toco de madeira –, mas uma escultura do personagem feita pelo artista Sérgio Coirolo eternizada na Praça da Estação. Ao lado dele, outras duas estátuas: a da secretária Lindaura, aquela que o Analista compara ao trigo – "lindo de se ver, mas só dá uma vez por ano" e a do próprio autor, Luis Fernando Verissimo, em tamanho natural. Poderá então juntar-se às estátuas de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, que ele mesmo pôs para conversar em crônica. Ou melhor, pôs a reclamar da vida eterna: Pessoa, de ser confundido com Eça de Queiroz; Drummond, da crueldade de terem-lhe eternizado de costas para a praia de Copacabana, só ouvindo o ruído do mar e o tintilar das mulheres; e Quintana, dos passarinhos (rá). Mas se e somente se Verissimo resolver escrever a respeito.
O MELHOR AUTOR DE
DIÁLOGOS DO BRASIL
Não por acaso, para chegar aos 800 verbetes de Ver!ssimas, foram consultados nada menos do que 75 livros. O organizador é o jornalista carioca Marcelo Dunlop, um colecionador que decidiu ainda moleque, aos 10 anos, recortar e guardar as crônicas do autor. Começou em 1989 e segue até hoje.
– Estamos falando em uma infância pré-internet, então essa coisa da persona dele ser tão diferente por escrito causava algo engraçada. Eu mal sabia que existia um escritor chamado Erico Verissimo lá no Rio Grande do Sul. Lia os textos do Luis Fernando e o imaginava um cara malandrão, magricela, cabeludão, carioca, torcedor do Flamengo… Quando eu vi uma foto dele, se não me engano em uma entrevista para a Playboy, imagina a minha surpresa. Poxavida, nem o time dele aqui no Rio (Botafogo) eu acertei – se diverte Marcelo.
Um dos principais objetivos da antologia, conta Marcelo, foi apurar se aquelas tantas frases espalhadas pela internet eram de fato do autor. Para isso, poderia ter consultado Jorge Furtado, o cineasta gaúcho que, ao lado de Guel Arraes, transformou as crônicas de Verissimo nas Comédias da vida privada e as levou para a televisão na década de 1990. Foram de popularidade comparável apenas ao Analista de Bagé:
GALERIA: AS COBRAS
– Eu até hoje não sei bem como faço isso. De tanto lidar com textos do Verissimo, de às vezes ter de enxertar uma linha de diálogo e outro naquele mesmo estilo para fechar uma cena, eu sei dizer exatamente se um texto é ou não dele. Digo, sem medo algum de errar, que ele é o melhor escritor de diálogos do Brasil – avalia Furtado.
Uma das piadas mais refinadas de Verissimo, Furtado confessa ter surrupiado e adaptado para o início do filme Houve uma vez dois verões:
– É aquela situação em que o guri pensa horrores em algo inteligente para dizer a uma guria desconhecida. Mas, quando fala, a frase soa engraçado. Como se fosse uma palavra errada. Na crônica do Verissimo, o guri quer abordar a guria na livraria e pergunta: "Lês muito?" e ela "QUÊ?!" – se diverte Furtado, às gargalhadas. – Mas daí tu percebes que ele tem um senso de humor ali realmente muito sofisticado, entende? Porque a pessoa ri da piada meio sem saber por que achou engraçado.
O mesmo vale para o desenho, segundo outro dos melhores amigos de Verissimo, o cartunista paulista Paulo Caruso, gêmeo de Chico Caruso. Na opinião do amigo, mesmo como chargista, o colega gaúcho chama muito mais atenção pelo refinamento do texto do que pelo traço. O próprio Verissimo não se considera um desenhista de primeira – “escolhi cobras como personagens porque elas são fáceis de fazer. A cobra é só pescoço. A reação do público foi imediata, mas mesmo assim eu continuei a desenhar”, brinca. Já a precisão dos diálogos, a sutileza do humor, Caruso considera a nata da nata:
– Repara, por exemplo, como só o genro abusado da Família Brasil tem nome. E ele chama como? Boca (risos). Tem outra da Família Brasil que eu considero uma obra-prima, porque ali é o Verissimo escrito. É o casal com os pezinhos n'água e a mulher puxa-assunto: "Você lembra?". O marido não entende, e ela continua: "Que eu entrava no mar, fingia me afogar. Você vinha me salvar e ficava me apalpando embaixo d'água?" O marido olha para um lado, para o outro: "Era o mesmo mar?"
ELA LEVOU SÓ
TRÊS MINUTOS
No filme de Jorge Furtado, o "lês muito?" virou "quer churros?" Na vida real, conta Lucia, a cantada foi "tu não pintas as unhas de vermelho?" Com esse approach, Luis Fernando, então tradutor do jornal da Câmara de Comércio, começou a paquerar a datilógrafa carioca oito anos mais nova, que nunca havia parado para pensar no porquê do esmalte descolorido. Papo estranho, mas funcionou. Depois de um xis número de almoços nas redondezas, a convivência com a namorada fez Verissimo mandar às favas os planos de juntar dinheiro para estudar cinema em Londres. Reza a lenda que, em 22 de novembro de 1963, sem ainda saberem que naquele mesmo dia John Kennedy seria assassinado em Dallas, Verissimo apontou para um anel na vitrine de uma joalheria e deu cinco minutos para que Lúcia decidisse se queria se casar com ele.
– E ela levou somente três – se vangloria Luis Fernando.
Casaram em março de 1964, e brincam que a ditadura permanece até hoje. É uma das inúmeras piadas internas do casal. Outra é de que Lucia comparece a todos os eventos em que o marido fala não por gosto, mas para saber o que ele está pensando – "se eu contasse, tu fugia", responde o marido de pronto. Mas, brincadeiras à parte, de todas as pessoas que em algum momento se debruçaram sobre o enigma Verissimo, Lucia é de longe a que traz melhores respostas.
Luis Fernando nunca se queixa de nada. Nada o incomoda?
– Ah, sim. Tem uma coisa. Fisioterapia.
Segundo a mulher, Luis Fernando não é nada afeito a qualquer forma de exercício físico. Chegada a velhice, é um problema que preocupa a super ativa Lucia, pois o marido perde gradativamente massa muscular. Lamenta a ausência do amigo metido a atleta Millôr Fernandes, pois a orla do Rio é um dos poucos lugares em que Luis Fernando se anima em dar algumas caminhadas, para desfrutar de uma das suas grandes paixões. E não é a paisagem de Ipanema, denuncia Lucia:
– Dá uns passos e ele já começa: "Não era aqui que tinha uma empadinha boa?. Não era nesse bar que falaram daquele caldinho de feijão?"
É a mulher também que aponta em Luis Fernando as contradições mais diversas. Gosta demais de trabalhar sozinho, mas não é uma pessoa solitária. Não viveria sem amigos. O tipo pacato também poderia levar a crer em um dorminhoco. Mas não, Luis Fernando desde sempre é nsone. Tem o sono entrecortado por horas de leitura à cama. Jorge Gerhardt, contrabaixista e parceiro do Jazz 6, é um dos que contam das inúmeras vezes em que o sexteto achava que o saxofonista estava dormindo nas viagens da turnê, até o momento em que ouviam a sua voz se intrometer em uma conversa.
Salvo a obrigação de mexer o esqueleto, pouco o incomoda. Não o atingem, segundo Lucia, as manifestações de ódio depois do clima de acirramento político no Brasil. Ele que nunca escondeu sua simpatia pelo PT, embora tampouco oculte a decepção com o partido. Dias atrás, em São Paulo, Verissimo foi questionado por uma repórter do Estadão se não era uma Velhinha de Taubaté, sua ingênua personagem que acreditava em todos os presidentes. Com franqueza, respondeu que talvez tenha sido, no início do governo Lula. Mas hoje não. Verissimo segue marcado, no entanto, por ter sido um dos críticos mais sagazes de Fernando Henrique Cardoso desde que o tucano era comparado pelo autor ao América-RJ: "Quem não torce, pelo menos simpatiza."
De acordo com Lucia, xingamentos por e-mail não são sequer lidos. Já aconteceram um e outro episódios lamentáveis pessoalmente, em eventos públicos, mas insignificantes em comparação às manifestações de carinho. Algo que ficou claro ao longo daqueles dias complicados de 2012. Desde então, as pessoas ainda param o casal pelas ruas de Porto Alegre, Rio, São Paulo e por onde mais o autor perambula para dizer que rezaram por ele e para desejar saúde. Em um poste próximo ao Hospital Moinhos de Vento, uma pessoa que a família nunca descobriu quem é se dava o trabalho de pregar gradativamente plaquinhas com frases de incentivo ao estilo do Analista de Bagé – "te segura, patrão!" – conforme os dias de recuperação avançavam.
É nesse clima de carinho que o sarau se encerra. Com Verissimo ovacionado de pé e um coro de dois andares de “Parabéns a você”. Conforme a canja musical termina, ele e Lucia descem a escada do Ocidente juntos. Naqueles diálogos com Zuenir Ventura transformados em livro em Conversa sobre o tempo, Verissimo conta que Lucia invejava os casais que depois de anos casados ainda andavam de mãos dadas. Pois agora os dois caminham enganchados debaixo do guarda-chuva. Em tempos de William Bonner sem Fátima Bernardes, Brad Pitt sem Angelina Jolie, aí está um par que, salvo rompantes platônicos a Patricia Pillar, parece imune à passagem dos 52 anos de casamento. Aliás, sobre o passar do tempo, Verissimo tem uma de suas melhores sacadas..
– Pois é, tchê. Sou contra.
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