Dois contadores de histórias — mas antes de tudo escutadores de histórias, dessas que são narradas pelas pessoas ditas comuns, mas na verdade sempre singulares — reúnem-se em Almoço: Uma Conversa com Eliane Brum, HQ de Pablito Aguiar publicada pela Arquipélago Editorial (80 páginas, R$ 45). O volume está à venda exclusivamente no site da editora e, a partir de sexta-feira (28), também na barraca da Arquipélago na Feira do Livro de Porto Alegre. A sessão de autógrafos será no dia 7 de novembro, às 18h. Antes, a partir das 16h, no Auditório Barbosa Lessa do Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, haverá um bate-papo de Pablito com o jornalista Augusto Paim.
Gaúcha de Ijuí, Eliane, 56 anos, é uma das jornalistas mais conhecidas do Brasil. Após atuar 11 anos como repórter especial de Zero Hora e 10 anos na revista Época, em 2013 virou colunista da versão nacional do jornal espanhol El País (encerrada em 2021). Como escritora, ganhou o Prêmio Jabuti de livro reportagem por A Vida que Ninguém Vê (2006) e o Açorianos pelas crônicas de A Menina Quebrada (2013). Também é documentarista, tendo codirigido três filmes: Uma História Severina (2005), Gretchen Filme Estrada (2010) e Laerte-se (2017).
Nascido em Alvorada, Pablito, 34 anos, desde 2015 quadriniza relatos reais de porteiros, escritores, médicos, moradores de rua, padres, mães de santo... — 23 deles foram compilados em Alvorada em Quadrinhos (2016). Atualmente, está envolvido com os projetos Fala que Eu Desenho e Conversas em Porto Alegre. Ambos vão virar livros no ano que vem.
Olhar pra floresta não é como se eu olhasse pra uma outra coisa. É como se eu olhasse pra mim mesma. Eu tô em processo de transformação, de me tornar parte da floresta. A gente é um indivíduo, mas é ao mesmo tempo misturado com a floresta. Entendo o planeta, a vida, assim. Tem uma conversa acontecendo. Não com nossa linguagem, mas com uma outra linguagem. Não tem silêncio. Tem uma conversa enorme. Das plantas, dos fungos, dos insetos, das aranhas, das cobras, do rio... De tudo que é vivo.
ELIANE BRUM
Jornalista
Outro ponto de convergência é a plataforma trilíngue Sumaúma Jornalista do Centro do Mundo, lançada em setembro de 2022. Foi criada em Altamira, no Pará, por Eliane com seu companheiro, o inglês Jonathan Watts, editor global de ambiente do The Guardian, Carla Jimenez, ex-diretora do El País Brasil, Talita Bedinelli, ex-editora do mesmo jornal, e a jornalista peruana Veronica Goyzueta. Como conta em Almoço, Eliane entendeu que, se considera a Amazônia o centro do mundo, precisava "fazer esse movimento de corpo", passando a viver por lá, para ajudar a combater na "guerra climática contra a minoria dominante que destrói o planeta", lutando junto de lideranças indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas.
Pablito é um dos colaboradores da Sumaúma, batizada em alusão a uma árvore gigante e considerada sagrada. A convite da Arquipélago, o quadrinista viajou a Altamira, o terceiro maior município do mundo em extensão (supera países como Grécia, Portugal e Suíça), localizado na Floresta Amazônica, às margens do Rio Xingu. Através do desenho de traços simples mas afetuosos de Pablito, com um olhar para detalhes — o descascar de um dente de alho, o colorido de um jogo de azulejos —, visitamos a casa no meio da mata onde Eliane e Jon moram. Para o almoço, ela vai cozinhar feijão, o que constitui "um momento de internalidade, um ritual".
— Fazer esse ritual do feijão é como fazer um tipo de bruxaria — diz a jornalista. — No sentido de que eu fico elaborando as minhas coisas. Pensando em tudo. Mas mais do que isso: sentindo!
É por isso que a primeira das quatro partes da HQ se chama Sentir — as outras são Escutar, Imaginar e Lutar.
Quem nos recepciona em Altamira são os cachorros Flora, Babaju e Frida — homenagem à artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954), que inspira a decoração do lar que o casal está construindo. Virando a página, será a vez de conhecer os gatos: Bentinho, Capitu, Florêncio e Dorothy — os dois primeiros têm os nomes dos personagens do romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis; os dois seguintes são possíveis referências a Florêncio Vaz e Dorothy Stang. Ele é um indígena do povo Maytapu que se tornou antropólogo, professor, frei franciscano e ativista. Ela foi uma religiosa estadunidense naturalizada brasileira assassinada em 2005 em Anapu, no Pará, a mando de um fazendeiro.
Digo "são possíveis" porque, embora a HQ tenha surgido de um diálogo (leia na entrevista a seguir), Pablito adota uma política de não interferir no monólogo de Eliane. O quadrinista não desenhou a si próprio nem reproduz falas suas. Tampouco há notas de rodapé que expliquem menções à obra ou à biografia da sua personagem, como quando ela relembra que, aos cinco, seis anos, "pela raiva de terem humilhado meu pai", tentou botar fogo na prefeitura com uma caixa de palitos de fósforo — "Acho que me tornei jornalista ali".
Essa despreocupação não significa que falte sustância no feijão preparado por Eliane Brum e servido por Pablito Aguiar. Antes pelo contrário: apesar de curto, o quadrinho oferece momentos de densidade e profundidade. Quando Eliane conta que tem muita ternura pelas pessoas que abrem as portas de suas casas para ela (e mesmo que a pessoa more na rua, "a gente bate na porta"), diz que outro ingrediente essencial na receita de seu trabalho é a raiva — aquela que a acompanha desde a humilhação do pai:
— Porque eu faço um jornalismo de luta, né? Não ódio. Ódio é uma coisa que mata a gente por dentro. Eu não tenho ódio, eu tenho raiva. (...) Bom, se eu não posso botar fogo, então escrever foi essa maneira. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar.
Em seguida, Eliane fala sobre seu processo de escutar o outro, de escutar "qualquer pessoa, por mais atroz que seja o que ela tenha feito":
— A gente escuta com os olhos. Escuta não só as palavras, mas todos os sons... As cores... Toda a percepção dos cinco sentidos. E mais alguns. E tem aquela coisa interna que a gente faz, que eu falo que é atravessar a rua de si mesmo para ser capaz de escutar uma outra experiência de viver.
Eliane estende esse conceito de escuta para a sua relação com a Floresta Amazônica, com o ambiente, com o lugar onde diz "viver entre o terror e a alegria":
— Olhar pra floresta não é como se eu olhasse pra uma outra coisa. É como se eu olhasse pra mim mesma. Eu tô em processo de transformação, de me tornar parte da floresta. A gente é um indivíduo, mas é ao mesmo tempo misturado com a floresta. Entendo o planeta, a vida, assim. Tem uma conversa acontecendo. A gente tá falando aqui, mas tudo isso ali tá conversando. O que a gente vê e o que a gente não vê. É uma conversa mesmo. Não com nossa linguagem, mas com uma outra linguagem. Não tem silêncio. Tem uma conversa enorme. Das plantas, dos fungos, dos insetos, das aranhas, das cobras, do rio... De tudo que é vivo. É tudo uma grande conversa. E eu faço parte dessa conversa. Embora seja super ignorante e não consiga entender a maior parte. Mas tô tentando.
3 perguntas para Pablito Aguiar
Por telefone, Pablito disse que produzir Almoço foi a realização de um sonho:
— Desde 2016 a Eliane Brum está na minha vida através dos livros. A intensidade e a delicadeza dos seus textos me ajudam muito a saber aonde quero ir. Uma vez, quando ela veio apresentar um TED na Fundação Iberê Camargo, eu fui como fã, inclusive pedindo autógrafo. O convite da Arquipélago foi como se eles tivessem lido a minha mente.
Como surgiu a ideia de ambientar a HQ durante a preparação de um almoço?
Nos meus trabalhos, sempre procuro viver algo com o meu entrevistado. No livro Banzeiro Òkòtó (Companhia das Letras, 2021), a Eliane fala da relação dela com o feijão: "Elaboro magicamente a minha vida, em fogo lento, tirando o máximo de sabor que a terra me dá, usando tempero e ervas como bruxa". Achei que seria bonito desenhar ela fazendo feijão e conhecer mais esse lado pessoal da Eliane, a relação com onde ela vive.
Pode falar um pouco sobre o processo de produção?
Eu tive liberdade de fazer o livro que eu queria. Para o almoço em si, eu cheguei às 9h e sai às 14h. Gravei e fotografei enquanto ela estava preparando. Mas, ao todo, foi uma viagem de 12 dias. Assim, pude fazer observações que depois reproduzi no livro, como os ornamentos e as cores. A toalha de mesa, por exemplo, está na guarda do livro. Foram seis meses de trabalho, de um esforço bom, como quando tu tá subindo uma montanha: tu tá cansado, mas feliz de ter alcançado esse objetivo.
Ao não se colocar dentro da HQ, você deu todo o palco para a protagonista. Em contrapartida, em alguns momentos, como quando a Eliane fala da humilhação sofrida pelo pai e de como isso influenciou a trajetória dela, eu senti falta de um pouco mais de contexto.
Faço isso nos meus trabalhos, não me coloco, quero que o leitor se coloque no meu lugar, quero que ele preste atenção nas palavras de quem eu estou entrevistando, apesar de eu estar lá. Eu fiz perguntas para a Eliane, é claro, mas depois transcrevi toda a entrevista e montei como um mosaico de falas em quatro capítulos, cada um falando de coisas que foram fortes para mim. Não apresentei a Eliane, porque a ideia do projeto era que o livro fosse para quem já a conhecesse, e feito por um admirador. Tive muito cuidado de não cortar nada, de manter a essência do que ela falou.