Laerte é prenome masculino e feminino. E agora é também verbo. Depois de quase 60 anos como homem, o cartunista Laerte Coutinho se apresentou ao público como uma mulher. Depois disso, a Laerte passou a ser conhecida não apenas por seu trabalho, mas também por seu discurso e seu modo de vestir, que desafiam as classificações mais simplistas de sexualidade. A partir desta sexta-feira, é possível conhecer na intimidade o cotidiano e o pensamento dessa provocativa figura pública no documentário Laerte-se, que estreia na Netflix.
– Laerte-se é um verbo no modo imperativo, mas também no reflexivo. É um filme que traz questões para todas as pessoas, para que reflitam a respeito de seus próprios caminhos – afirma a diretora Lygia Barbosa da Silva.
O projeto foi dirigido por Lygia ao lado da jornalista Eliane Brum. A dupla entrevistou a protagonista do documentário por três anos, acompanhando etapas de seu processo criativo e encontros familiares.
– Fora algumas conversas específicas, o momento mais difícil foi quando admiti que o filme também seria gravado na minha casa. Por motivos difíceis até para eu entender, é muito duro admitir alguém dentro da minha casa. Ver-se filmada é uma experiência muito mais perturbadora do que se ver no espelho – conta Laerte.
Entre a primeira entrevista, na casa de Eliane, e a segunda, que seria onde mora Laerte, um ano se passou, pois a quadrinista não se sentia à vontade para receber a equipe. Mas, depois de vencida a resistência inicial, as documentaristas não encontraram ressalvas para registrar sua intimidade. A artista aparece brincando com o neto, mimando seus felinos, recebendo a manicure, escolhendo roupas para sair e se depilando no banho. Nas entrevistas, ela revela suas angústias e frustrações: fala sobre como a família recebeu sua mudança de gênero, avalia o momento político do país e reclama das limitações de parte do movimento LGBT.
Um dos temas mais recorrentes nas conversas é uma modificação corporal: Laerte reflete muitas vezes sobre a possibilidade de passar por um implante de seios – o documentário a acompanha inclusive em uma consulta médica sobre o assunto.
– Muitas questões que o filme aborda foram também questões pessoais que eu mesma abordei. O ponto mais evidente é em relação à cirurgia de implante, sobre a qual continuo indefinida, mas passei por vários entendimentos do que isso significa – diz Laerte.
Apesar do tom pessoal, Laerte-se é um documentário capaz de levantar questionamentos originais ao público.
– O filme atende a um desejo de autorreflexão, mas é também um modo de espalhar essa experiência, de fazê-la se tornar uma série de reflexões para outras pessoas. Sinto que na minha juventude havia falta disso. Nos anos 1970, não era fácil achar esse tipo de material sobre sentimentos e pensamentos – avalia a quadrinista.