Jornalista e editor da Libretos, Rafael Guimaraens é autor de obras referenciais sobre episódios e lugares marcantes da Capital, como Tragédia da Rua da Praia (2005), Teatro de Arena – Palco de Resistência (2007) e 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre (2017). Em 2009, publicou A Enchente de 1941, livro sobre a inundação de 83 anos atrás.
Nas últimas semanas, Guimaraens tem dado entrevistas para falar sobre a desventura de ter escrito sobre uma enchente do passado, a maior até então e tratada quase como uma lenda da cidade, e ter ficado ilhado em seu apartamento no Menino Deus quando Porto Alegre foi engolida por um volume de água ainda mais alto — em 1941, o pico do Guaíba foi de 4,76m, superados pelo 5,35m atingidos em 2024. Quando precisou sair do próprio lar ao lado da parceira Clô Barcellos, abrigando-se na casa de conhecidos, sequer percebeu a ironia do destino.
Nesta entrevista, ele fala sobre esse trabalho, compara a grande cheia do passado com a do presente e explica a situação da Libretos, que, como várias outras editoras da Capital, teve seu depósito afetado pela subida das águas.
Quando Porto Alegre começou a inundar, você não lembrou logo da enchente de 1941?
A princípio, eu não percebi, mas as pessoas foram me falando. Minha afilhada disse: "Dindo, tu viu, aconteceu tudo como na enchente de 1941". Isso foi inacreditável. Essas duas enchentes, a de 1941 e a de 2024, se diferem das outras porque ocorreram nos meses de abril e maio, sendo que o comum era que as enchentes acontecessem no segundo semestre, em agosto ou setembro, algo a que se chamava de Águas de São Miguel, por causa do período de devoção ao santo. Porto Alegre sempre teve enchentes muito fortes, já que o Guaíba é alimentado por rios caudalosos.
Antes de você escrever sobre a enchente de 1941, ela só havia sido documentada em jornais e de forma pontual em alguns livros, mas não havia um livro específico sobre o assunto, certo?
Não tinham outros livros. No início, minha ideia era fazer apenas um álbum de fotos, porque eu achava as fotografias da enchente muito impactantes. Os fotógrafos se puxaram e mostraram uma cidade vivendo na dramaticidade. Ao mesmo tempo, as imagens mostravam prédios que já existiam naquela época e seguiam de pé nos dias de hoje. Tinha uma edição extra da Revista do Globo muito completa, mas um livro específico sobre a enchente não havia. Fizemos uma tiragem inicial de 1,5 mil exemplares achando que só os mais velhos iriam se interessar. Em uma semana, vendemos quase tudo. Tivemos que imprimir uma nova tiragem às pressas. Desde então, é um livro que vem sendo reimpresso praticamente todos os anos. Todo mundo ouvia falar, mas não sabia como aconteceu.
Tem coisas muito semelhantes entre as duas enchentes, incluindo o fato de o Guaíba chegar ao pico justamente quando a chuva cessa e surge um lindo dia de sol. É um contrassenso.
Tanto em 1941 quanto agora houve incidência de vento sul que não apenas impediu o escoamento da água do Guaíba como a empurrou para dentro da cidade. Uma coisa que aconteceu naquele ano e está acontecendo agora é uma enorme rede de solidariedade, horizontal, vindo da própria sociedade. Minha filha está envolvida em um abrigo, fazendo comida, fazendo plantão com horário marcado. Naquela época, também houve muito disso. Já não basta a preocupação com as suas coisas, as pessoas também se preocupam com os outros. Esses voluntários, às vezes, ficam estressados e até choram, se envolvem nos dramas de quem não sabe o que vai acontecer quando voltar para casa.
(A Enchente de 1941) É um livro que vem sendo reimpresso praticamente todos os anos. Todo mundo ouvia falar (do episódio), mas não sabia como aconteceu.
RAFAEL GUIMARAENS
Qual enchente causou mais danos?
Em Porto Alegre, a enchente de 1941 foi bem mais dramática. Chegou a ter 70 mil flagelados, ou seja, mais de um quarto da população (na época, a Capital tinha 272 mil habitantes) ficou flagelada, perdeu tudo. Se fosse hoje, equivaleria a 300 mil pessoas, o que não aconteceu nesta enchente (segundo a prefeitura, a população afetada é de 157 mil pessoas). E por que isso? Porque a cidade era menor e os núcleos populacionais se concentravam na Zona Norte e na Zona Sul. Na Zona Norte, onde se concentravam as indústrias, também moravam os trabalhadores dessas indústrias. E na Zona Sul viviam as populações negras. A população ficava muito em torno das áreas alagadiças. Hoje, não. A população se espalhou de tal maneira que a enchente mais recente atingiu uma parcela bem inferior quando lidamos com porcentagem. Neste ano, o drama foi bem mais grave no Estado, mas, em Porto Alegre, foi algo mais localizado. Houve imperícia em relação às bombas de água e isso desalojou muita gente na Cidade Baixa e Menino Deus. Imagino que alguém terá que se responsabilizar por isso. Não precisaria ter chegado a esse ponto.
O livro mostra fotos de pessoas brincando e até pescando na água da enchente de 1941. Hoje, o acesso rápido à informação permitiu saber que essa água pode causar leptospirose.
Essa água de hoje também é muito mais poluída do que as águas de 1941. Dá para ver nas fotografias que a água é mais transparente. Hoje, é uma água marrom, lamacenta. É uma água que já vem contaminada de agrotóxicos, detritos industriais. E, nas ruas do Menino Deus, passou pelos bueiros, o que é muito pior.
Em 1941, os barcos funcionavam como um meio de transporte quase oficial. Isso é muito curioso.
O rádio noticiava: "Vai sair um barco para não sei onde". Então as pessoas iam até lá. Era como se fosse um meio de transporte normal. Se as pessoas moravam em um lugar que estivesse seco, mas o caminho até lá era alagado, pegava-se um barco. O barco Princeza do Sul, que está na foto de capa do livro, dava a volta no Mercado Público, seguia pela Júlio de Castilhos e rumava à Zona Norte. Na enchente de 2024, os barcos foram usados para salvamentos, resgates. No passado, não, eram meios de transporte, mesmo.
A última frase do livro é a seguinte: "A eficácia do Muro da Mauá ainda está para ser testada". Qual é a sua conclusão?
Te falo com muita franqueza que nunca gostei muito do muro. Tinha gente que queria derrubar o muro. Eu não cheguei a tanto. Mas com essas mudanças climáticas, com os eventos climáticos se repetindo com frequência e em intervalos cada vez menores, o muro e toda a cortina de proteção criada nos anos 1970 está sendo útil. O muro foi testado, mas houve culpa de quem deveria fazer manutenção e testes periódicos para avaliar o funcionamento das comportas. A eficácia não pôde ser testada de fato porque houve imperícia na manutenção. Sou contra a interferência meio grotesca no centro da cidade, porque sou do tempo em que íamos ao Cais do Porto, isso na época de menino. Mas esta foi a tecnologia pensada na época em que foi construído e o muro está aí. Dentro do processo de aceleração das mudanças climáticas, me convenço que o muro é útil.
Tem pessoas que usam a enchente de 1941 para negar que mudanças climáticas possam ter contribuído com a enchente de 2024.
Eu temia que isso fosse acontecer. As enchentes estão acontecendo com muita frequência. Aconteceram em Porto Alegre, em 2015, no ano passado e neste ano. A mudança climática é uma realidade e o aquecimento global não é brincadeira ou invenção de um ambientalista aloprado. Existe consenso de que os países devem reduzir emissões de CO2 e usar menos combustíveis fósseis. Negar tudo isso não nos leva a nada. A agenda ambiental é urgente e, se não for colocada como prioridade, passaremos por outras tragédias desse tipo. Lembro que Porto Alegre foi a primeira capital a ter uma Secretaria Municipal do Meio Ambiente, isso na década de 1970, e acabou sendo exemplo para outras cidades. Hoje, a Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade é acoplada à Secretaria de Urbanismo (fusão realizada na gestão do prefeito Sebastião Melo).
O depósito da Libretos, na Voluntários da Pátria, foi inundado e vocês estimam que muitos livros tenham se perdido, inclusive o estoque de A Enchente de 41. O que já se sabe?
Tínhamos feito uma nova reimpressão de A Enchente de 41 no ano passado, antes da Feira do Livro. Havia uma quantidade grande dele no depósito. Não sabemos ainda o que houve no depósito, mas sabemos que a água, na fachada do prédio, subiu 2m de altura. Estimamos que perdemos 80% dos livros que estavam lá. Mas a área ainda está interditada. Uma nova reimpressão deve ficar pronta nas próximas semanas. Temos recebido muitos pedidos, inclusive de livrarias de fora do Estado, o que não era comum.
A água, na fachada do prédio (do depósito da editora, na Rua Voluntários da Pátria), subiu 2m de altura. Estimamos que perdemos 80% dos livros que estavam lá.
Como ter pesquisado e escrito sobre a enchente de 1941 te ajudou a enfrentar a deste ano?
Vai chegar um ponto em que a situação vai melhorar. No passado, famílias que perderam tudo reconstituíram suas vidas. Muitos negócios afetados não reabriram. O sentimento é de reconstrução. Quanto à Libretos, temos uma banca na Feira do Livro e precisamos ver quantos livros sobraram no estoque e quais deveremos reimprimir. Vamos encontrar um jeito de reimprimir tudo para que na próxima Feira do Livro possamos cumprir com a nossa função. Não contamos com a hipótese de não estar lá.
Você tem uma série de livros que documentam episódios históricos de Porto Alegre. De que forma documentar esses fatos pode contribuir com a cidade?
A Enchente de 41 trata dos processos de relação do homem com a natureza. Os outros são mais comportamentais, tratando de homofobia, racismo, política, relações desiguais na sociedade. Eu procuro chegar o mais perto possível da verdade daquele momento e das diversas tábuas de valores que existem em cada período. Procuro mostrar como se fundaram valores que hoje ainda se manifestam. Procuro mostrar como os comportamentos se formam a partir de situações extremas, as reações das pessoas, enfim. Como as opiniões e os preconceitos vão se formando.
A pergunta que não quer calar: você vai escrever um novo livro, desta vez sobre a enchente de 2024?
O livro da enchente de 1941 lidou com um fato sobre o qual poucas pessoas sabiam que havia tido um enchente. Passou-se um tempo muito grande do episódio até o momento em que o livro foi publicado, em 2009, e o livro acabou trazendo esse conhecimento para as pessoas, consolidou uma série de informações sobre o processo que resultou na enchente. Então foi um livro que se justificou. Mas agora, todo mundo está vendo diariamente no noticiário o que é a enchente de 2024. A circulação de informações é muito grande. Certamente, tem muita gente que sabe mais dessa enchente de 2024 do que eu. Se eu fosse fazer um livro, teria que ser algo mais profundo, científico. Do ponto de vista factual, um livro agora não se justificaria.