É fácil entender a equação que tornou Sob as Águas do Sena (Sous la Seine, 2024), lançado na quarta-feira (5), o filme mais visto na Netflix. Basta olhar para seu cartaz e saber do seu cenário: tem um tubarão atacando Paris. Ponto.
De um lado, está o animal mais vilanizado pelo cinema, desde que Tubarão (1975) inaugurou a era dos grandes fenômenos de bilheteria. De lá para cá, a quantidade de filmes atesta o fascínio sinistro provocado pelo do peixe. A lista, só para citar os mais famosos, inclui as três sequências do clássico dirigido por Steven Spielberg (produzidas entre 1978 e 1987), Do Fundo do Mar (1999), Mar Aberto (2003), a franquia Sharknado (iniciada em 2013), Águas Rasas (2016), Medo Profundo (2017), Megatubarão (2018) e The Requin: À Deriva (2022).
Do outro, está uma das cidades mais visitadas do mundo, graças tanto a atrações visíveis, como a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, o Museu do Louvre, a Catedral de Notre-Dame, quanto a uma aura mítica e romântica que é costumeiramente reverenciada no cinema. Vide a famosa frase de Casablanca (1942) — "Nós sempre teremos Paris" — ou a homenagem de Woody Allen em seu Meia-Noite em Paris (2011).
Em 2024, Paris está ainda mais em evidência, por causa dos Jogos Olímpicos, que serão realizados entre 26 de julho e 11 de agosto. E Sob as Águas do Sena se passa justamente à época de um fictício evento-teste da Olimpíada, o Mundial de Triatlo, com a prova de natação no rio que corta a capital da França.
Mas o filme dirigido pelo francês Xavier Gens, autor de Hitman: Assassino 47 (2007), Exorcismos e Demônios (2017) e três episódios da série Lupin (2021-), começa em 2021 e bem longe de Paris. Interpretada por Bérénice Bejo, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por O Artista (2011), a cientista Sophia comanda uma equipe de mergulhadores em uma missão no Pacífico Norte. No meio do lixo plástico que ameaça a saúde dos oceanos, eles rastreiam um tubarão-mako. Trata-se de uma fêmea, batizada de Lilith. Tragicamente, Sophia descobre que o animal cresceu além do tamanho normal. É a corporificação do aforismo atribuído ao biólogo Charles Darwin (1809-1882), autor de A Origem das Espécies, que é reproduzido na abertura de Sob as Águas do Sena: "Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças". Ou seja: nossa poluição pode estar criando monstros, como aquele visto em O Hospedeiro (2006), do sul-coreano Bong Joon-ho.
Três anos depois desse banho de sangue, a traumatizada Sophia trabalha no aquário de Paris. Lá, é abordada por uma jovem ativista ambiental, Mika (Léa Leviant). Segundo a garota, Lilith atravessou mares e agora está nadando nas profundezas do Sena, onde já teria feito pelo menos mais uma vítima. A protagonista não acredita, afinal, tubarões, com raríssimas exceções, vivem em água salgada, e a do rio é doce.
E, de acordo com o Centro Nacional Francês de Investigação Científica (CNRS), nunca houve registro de tubarão no Sena. O que inspirou o filme foram recentes aparições de uma orca e de uma beluga — a primeira morreu a 70 quilômetros de Paris, e a segunda, a 136. Uma outra "inspiração" pode ter sido um projeto sobre um bagre gigante e carnívoro apresentado em 2014 pelo roteirista Vincent Dietschy, que acusa a Netflix francesa e Xavier Gens de plágio. O processo na Justiça deve começar neste mês de junho.
Polêmica à parte, Sob as Águas do Sena entrega o que sua premissa promete, mas sem mergulhar na tosquice assumida de um Sharknado. Embora seja um filme ciente de seus absurdos, não deixa de exibir teor crítico. Obviamente, presta tributo ao Tubarão de Spielberg no retrato da fictícia prefeita de Paris, que não arreda pé de manter o campeonato de triatlo mesmo diante do alerta científico — cabe a um policial, Adil (o carismático Nassim Lyes, de Novos Ricos), ser o principal aliado de Sophia. Mas Xavier Gens também não poupa a figura da jovem ambientalista: mostra como a mistura de idealismo, ingenuidade e irresponsabilidade pode ser explosiva.
Você que leu até aqui pode estar se perguntando: mas e Porto Alegre, onde é que entra nessa história?
Para explicar, vou ter de dar spoilers sobre o final do filme.
Aviso dado, a relação de Sob as Águas do Sena com a capital do Rio Grande do Sul é uma coincidência semelhante àquela vista em Planeta dos Macacos: O Reinado (2024), ainda em cartaz nos cinemas.
Na conclusão do título mais visto na Netflix, o rio francês está infestado por tubarões nascidos de Lilith via partenogênese, a reprodução assexuada, sem fertilização. A repressão policial com tiros de pistola e metralhadora acaba atingindo bombas da época da Segunda Guerra Mundial que estavam adormecidas no fundo do Sena — como visto em uma das cenas iniciais. A detonação desses artefatos provoca um tsunami que inunda Paris. Tal qual aconteceu com Porto Alegre durante a enchente de maio, vemos completamente alagados cartões-postais da Cidade Luz. O cenário torna-se ainda mais trágico com o zigue-zague de centenas ou milhares de barbatanas digitais.