Filmes de tubarão costumam fisgar a gente lá em casa. É quase uma tradição familiar, iniciada ainda na minha infância, quando assisti ao clássico Tubarão (1975), de Steven Spielberg – e que hoje, como alguns já apontaram, parece uma parábola premonitória sobre a pandemia de coronavírus. Lembre-se de que, na obra (um raro título dos anos 1970 disponível na Netflix), a análise de um cientista é ignorada, políticos fazem piada sobre o caso, empresários pressionam contra o fechamento do balneário de verão...
Minhas filhas herdaram o misto de medo e fascínio por essa criatura da natureza que vem nos alertar tanto sobre a fragilidade humana quanto sobre nossa pretensão de brincar de Deus – vide Do Fundo do Mar (1999), em que um experimento genético para tornar os animais mais inteligentes acaba deixando-os mais perigosos. A mais velha, a Helena, primeiro passou por um trauma inesperado: nunca vou esquecer de como ela chorou na cena do tubarão em Procurando Nemo (2003), o célebre desenho animado da Pixar. O peixe virou seu bicho-papão, a ponto de nem querer olhar para o Guaíba quando viajávamos. Mas quando ela descobriu a tosquice assumida da franquia Sharknado (seis filmes a partir de 2013), já na companhia da mana, a Aurora – esta, sim, uma fã de primeira hora das histórias de terror –, vestiu a camiseta do time (mas ainda não se acha pronta para encarar crocodilos como os do eletrizante Predadores Assassinos).
Recentemente, fizemos um fim de semana de imersão: teve Águas Rasas (2016), em que Blake Lively interpreta uma surfista que precisa enfrentar sozinha um monstro marinho em uma isolada praia do México; teve Medo Profundo: O Segundo Ataque (2019), em que quatro jovens mergulhadoras são acuadas por tubarões brancos em um labirinto subaquático; e teve Mar Aberto (2003), em que um casal fica à deriva no Caribe.
Este último, que está em cartaz no Amazon Prime Video (o título original é Open Water), continua vigoroso em sua combinação de orçamento enxuto (custou apenas US$ 130 mil) e tubarões de verdade – isso mesmo: ao longo de 120 horas de filmagem, que resultaram em 79 minutos de duração, os atores usaram malhas de metal por baixo das roupas de mergulho de seus personagens.
Cada minuto parece uma eternidade a partir do momento em que Daniel e Susan (vividos por Daniel Travis e Blanchard Ryan) descobrem, ao subir à tona, que foram esquecidos no meio do oceano pelo barco da excursão de mergulho. Mas sozinhos eles não ficarão.
Mar Aberto foi o segundo longa-metragem do diretor americano Chris Kentis, realizador de Grind – Correndo pela Vida (1997) e que depois só fez A Casa Silenciosa (2011) – ele não teve envolvimento em Open Water 2: Adrift (2006), também disponível na plataforma de streaming da Amazon. Kentis também escreveu e editou esse terror na água, além de ter dividido as câmeras digitais com a mulher, a produtora Laura Lau.
O roteiro é baseado em uma história real ocorrida em 1998, na grande barreira de corais da Austrália. E Mar Aberto, com seu estilo quase documental, sem os efeitos especiais do gênero, tem uma verossimilhança atroz. Que casal nunca acreditou que umas férias fora de hora pudessem solucionar uma crise, só para vê-la se intensificar?
Quem só conhece a premissa do filme pode até duvidar de sua veracidade, mas, da maneira como acontece, é bastante aceitável que os personagens sejam deixados para trás – um sujeito rabisca palitinhos para controlar a volta dos mergulhadores! Os perrengues de Daniel e Susan só reforçam o realismo: eles sentem fome, sofrem de cãibras, culpam um ao outro por estarem à deriva e se assustam com o que veem e o que não veem.
As situações enfrentadas tornam, em retrospecto, perverso o humor do começo do filme. Ciente do futuro que aguarda o casal, o diretor mostra Daniel primeiro enfiando a cabeça na boca de um tubarão empalhado, depois tentando matar um mosquitinho no quarto de hotel. É notável, também, o controle do tempo e do espaço – que pavor olhar para o horizonte e só enxergar isso, o horizonte.
Insinuando mais do que expondo, intercalando closes nos rostos crispados com a vastidão do mar, alternando a soturna música composta por Graeme Revell ora com canções tribais, ora com o incessante barulho do balanço das águas, o filme termina por desorientar também o espectador – que se junta a Daniel e Susan na súplica a Deus quando só os relâmpagos iluminam a cena.