O Dia da Consciência Negra é celebrado em 20 de novembro porque nessa data, em 1695, foi morto Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares, um símbolo da resistência contra a escravidão no Brasil. Para marcar esta segunda-feira, a Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, vai exibir às 20h Um É Pouco, Dois É Bom (1970), filme realizado na Capital por Odilon Lopez (1941-2001), um dos pioneiros do cinema negro brasileiro.
Trata-se do primeiro longa-metragem gaúcho assinado por um diretor negro — e também foi, em uma época marcadas pelas produções com os astros nativistas Teixeirinha e José Mendes, o primeiro filme do RS de temática urbana, abrindo caminhos para a geração de Giba Assis Brasil, Nelson Nadotti, Carlos Gerbase e Werner Schünemann.
A sessão no Capitólio tem entrada franca (distribuição de senhas a partir das 19h) e será a última em película 35mm, como explicou, em artigo publicado em GZH, o crítico e pesquisador Marcus Mello, programador da sala. Enfim o filme ganhará uma cópia digital completa, no formato 4K, "apto a ganhar todas as telas, das salas de cinema tradicionais aos canais de streaming". Esse processo, escreveu Mello, "inaugura uma nova fase na difusão da filmografia de Odilon Lopez e é um passo fundamental para reinserir o nome do diretor na historiografia do cinema brasileiro, onde ainda não teve sua contribuição devidamente valorizada".
Natural de Raul Soares (MG), em 1959 Odilon veio do Rio para Porto Alegre para trabalhar como cinegrafista da TV Piratini. Em 1963, foi contratado pela TV Gaúcha (hoje RBS TV). Ganhou três prêmios de reportagem na categoria Rádio e Televisão da Associação Riograndense de Imprensa (ARI): em 1964, com imagens exclusivas da saída do presidente deposto João Goulart de Porto Alegre para o exílio no Uruguai; em 1967, com o julgamento do marxista francês Regis Debray na Bolívia e a descoberta do corpo do guerrilheiro Ernesto Che Guevara; e em 1972, ao registrar neve em Gramado.
Com a participação de Luis Fernando Verissimo na redação dos diálogos, Um É Pouco, Dois É Bom divide-se em dois episódios. Em Com... um Pouquinho de Sorte, um casal formado por um motorista de ônibus (Carlos Carvalho) e uma comerciária (Araci Esteves) entra em crise com o nascimento do primeiro filho. Pela trama, Lopez, mesmo no momento mais duro da ditadura militar, critica o chamado "milagre econômico brasileiro".
No segundo episódio, Vida Nova... por Acaso, o próprio Lopez interpreta um batedor de carteiras que vive um romance impossível com uma loira da alta sociedade (Angela Grosser). De forma pioneira, o diretor aborda a questão do racismo estrutural na sociedade brasileira.
Este é o tema de outra dica para este Dia da Consciência Negra: M8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019), na Netflix (queria dar mais sugestões, mas estão indisponíveis no streaming os documentários A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo, e O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes, além de Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, que mistura o registro documental com a ficção científica).
Vencedor dos troféus de melhor diretor e roteiro adaptado no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, M8 foi dirigido por Jeferson De, criador do Dogma Feijoada — versão do Dogma 95, movimento estético dinamarquês que pregava um cinema mais realista. O manifesto do cineasta paulista estipulava que: diretor e protagonista devem ser negros; a temática tem de estar relacionada à cultura afro-brasileira; personagens estereotipados estão proibidos; e super-heróis e bandidos devem ser evitados.
Autor de Bróder (2010), Correndo Atrás (2018) e Doutor Gama (2021), Jeferson vem expandindo o Dogma Feijoada: ao experimentar gêneros distintos, ele mostra que não existe "um" cinema negro. Há vários, embora todos carreguem um posicionamento político. Em M8, ele envereda pelo suspense sobrenatural, mas tratando de problemas bem reais. O racismo estrutural é o alvo nesta adaptação do romance homônimo de Salomão Polak. O personagem principal, Maurício (interpretado por Juan Paiva), é o único negro na turma de Medicina de uma faculdade do Rio. Na aula de anatomia, ele fica intrigado pelo fato de todos os corpos serem de pessoas negras. Tem mais a ver com os mortos do que com os vivos, reflete o filho de uma auxiliar de enfermagem.
O elemento fantástico logo dá as caras (mas não espere algo como Corra! ou O que Ficou para Trás, a pegada é mais leve): Maurício passa a ter alucinações a respeito de um dos cadáveres, o M8 do título. O jovem não vai sossegar até encontrar a identidade daquele homem, como não sossegam as mães negras enquanto não encontram os corpos de seus filhos, tombados pela violência do tráfico ou da polícia.
No meio da jornada, Maurício vai se envolver com uma colega branca (Suzana, papel de Giulia Gayoso), discutir as cotas raciais nas universidades, sofrer com o preconceito ostensivo e o quase velado, aprender algo sobre ancestralidade e religiosidade e lidar com sua própria revolta. Em uma participação silenciosa, Lázaro Ramos conduz M8 a um antológico final, marcado por morte, dor e indignação, mas também por afeto, união e respeito.