Por Marcus Mello
Crítico, programador e pesquisador de cinema
A sessão de estreia de Um é Pouco, Dois é Bom, no Cine Victoria, em Porto Alegre, em 22 de novembro de 1970, representou não apenas um momento histórico para a produção cinematográfica local, mas também consistiu um feito assombroso para a época, até hoje inigualado. Roteirizado, produzido, protagonizado e dirigido por Odilon Lopez (1941-2001), esse título seminal da nossa cinematografia foi o primeiro longa-metragem realizado por um profissional negro no Rio Grande do Sul. Dividido em dois episódios, Um é Pouco, Dois é Bom também abordou de forma pioneira a questão do racismo estrutural na sociedade brasileira, antecipando em três anos aquele que costuma ser considerado o marco inicial do cinema negro no país, o curta-metragem Alma no Olho (1973), de Zózimo Bulbul.
A única cópia em 35mm de Um é Pouco, Dois é Bom está depositada desde 2017 na Cinemateca Capitólio, instituição mantida pela Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa, e terá uma rara exibição pública nesta segunda-feira, às 20h. A sessão comemora a passagem do Dia da Consciência Negra, o 53º aniversário de lançamento do filme e sobretudo a sua ansiosamente aguardada digitalização em 4K.
Até o momento, apenas a segunda parte de Um é Pouco, Dois é Bom estava disponível em formato digital, em uma versão com baixa resolução feita em 2006 pelo ator, diretor e produtor Zózimo Bulbul (grande admirador de Odilon), impedindo o amplo acesso à integralidade da obra. A digitalização da cópia em 35mm de Um é Pouco, Dois é Bom foi viabilizada pela Cinemateca do MAM, do Rio de Janeiro, através do projeto Cinemateca: Redes em Movimento, que ao longo de 2023 destaca a atuação de diferentes instituições dedicadas à preservação audiovisual. Essa digitalização em 4K será apresentada pelo MAM em 29 de novembro próximo, acompanhada de uma conversa sobre o trabalho desenvolvido pela Cinemateca Capitólio e a trajetória de Odilon Lopez.
Além da digitalização da cópia em 35mm de Um é Pouco, Dois é Bom, pertencente ao acervo da Cinemateca Capitólio, os seus negativos, hoje depositados na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, também serão escaneados em breve. A combinação dos dois materiais, positivo e negativo, irá gerar uma nova matriz digital em 4K para preservação e circulação, trabalho supervisionado por Débora Butruce, presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual e profissional com larga experiência na área, que esteve à frente da recente restauração do clássico A Rainha Diaba (1974), de Antônio Carlos da Fontoura.
Esse processo inaugura uma nova fase na difusão da filmografia de Odilon Lopez e é um passo fundamental para reinserir o nome do diretor na historiografia do cinema brasileiro, onde ainda não teve sua contribuição devidamente valorizada. Se o segundo episódio de Um é Pouco, Dois é Bom, “Vida Nova... Por Acaso”, protagonizado por Lopez, tornou-se uma referência para a nova geração de realizadores negros surgidos no país, o acesso ao primeiro episódio, “Com... um Pouquinho de Sorte”, conhecido por muito poucos espectadores, deverá surpreender pela contundência de sua crítica ao chamado “milagre econômico brasileiro”. O episódio acompanha a tragédia que se abate sobre um jovem casal (interpretado por Araci Esteves e Carlos Carvalho) após o marido perder o emprego e não conseguir pagar o financiamento de seu apartamento. Além de ver a icônica protagonista de Anahy de las Misiones (1997) no esplendor de sua juventude, estreando no cinema ao lado de seu parceiro afetivo e artístico, o ator e dramaturgo Carlos Carvalho (1939-1985), o episódio revela a ousadia de Lopez em denunciar, no momento mais duro da ditadura, a falácia da narrativa em torno da suposta prosperidade econômica produzida pelo governo militar. Não por acaso, o Ministério da Justiça proibiu o filme para menores de 18 anos, e o Departamento de Censura lhe impôs o corte de uma frase “em tom de deboche”, segundo observação do censor à época, conforme revela documento também preservado pela Cinemateca Capitólio.
A cópia em 35mm de Um é Pouco, Dois é Bom será projetada pela última vez neste dia 20, em sessão desde já histórica. A partir de seu escaneamento em 4K, ela repousará segura nas prateleiras da Cinemateca Capitólio, enquanto o filme de Odilon Lopez poderá finalmente correr o mundo em seu novo formato, apto a ganhar todas as telas, das salas de cinema tradicionais aos canais de streaming.