A live promovida pela Associação Profissional dos Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme Inverno (1983), na última sexta-feira (3), trouxe à tona um debate sobre racismo e a presença de negros no setor audiovisual do Estado. A transmissão reunia profissionais envolvidos no longa-metragem e a diretora e roteirista Mariani Ferreira (também integrante do coletivo Macumba Lab), além do mediador Giordano Gio.
Em uma pergunta sobre as influências estéticas que lembravam o cinema francês, a atriz e produtora do filme Luciana Tomasi citou os sobrenomes dos profissionais como justificativa: "Tu tá falando com um Schünemann, com uma Tomasi, uma Adami, um Gerbase... Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende? (...) Inclusive eu tenho sangue francês também, não adianta, então cada um faz da sua história".
Mariani, única negra participando da conversa, respondeu Luciana dizendo que "Porto Alegre era a cidade de Oliveira Silveira (em referência ao poeta, idealizador do Dia da Consciência Negra)". Em entrevista a GaúchaZH, ela destacou que "as palavras ditas na live exemplificam uma estrutura racista".
Em 2018, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) divulgou um estudo intitulado "Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016". Nos 142 longas exibidos comercialmente no circuito, 75,4% foram dirigidos por homens brancos. Já mulheres brancas foram responsáveis por 19,7%. Homens negros estiveram no comando de 2,1% dos filmes. Nenhuma obra foi dirigida ou roteirizada por uma mulher negra naquele ano. Consultada por GaúchaZH, a Secretaria de Cultura do RS está realizando um levantamento sobre profissionais do Estado.
Contando com 36 profissionais negros e negras do audiovisual gaúcho, o Coletivo Macumba Lab aponta em seu manifesto de criação que, até hoje, apenas cinco longas foram dirigidos por pessoas negras no Rio Grande do Sul: Um é Pouco, Dois é Bom (1970), de Odilon Lopez; Porto dos Mortos (2012), de Davi de Oliveira Pinheiro; Central – O Filme (2016), de Tatiana Sager e Renato Dornelles; De Boca em Boca (2016) de Wagner Abreu; e O Caso do Homem Errado (2017), de Camila de Moraes. Desses cinco, apenas Central recebeu financiamento público.
Para o coletivo, a luta antirracista precisa que pessoas brancas saiam do seu lugar de conforto. "A luta antirracista precisa que os brancos, que chegarem antes de nós nos espaços de poder, empreguem pessoas negras, leiam a produção intelectual de pessoas negras e tensionem instituições das quais fazem parte para que pessoas negras ocupem todos os espaços, dos sets de cinema à universidade", diz a nota do Macumba Lab.
Entre alguns caminhos para a democratização e ampliação presença de negros no setor audiovisual do RS, o coletivo sugere inclusões em políticas públicas de formação e contratação na área, assim como em festivais e na esfera privada, buscando uma paridade racial. E finaliza: "Que nada seja discutido sobre nós sem nós".
Democratização e ampliação
Gaúcha radicada em Salvador (BA), Camila de Moraes fez história no cinema brasileiro ao ser a segunda negra no país a ter um filme exibido nas salas comerciais. A primeira foi Adélia Sampaio, com Amor Maldito (1984). Camila dirigiu o documentário O Caso do Homem Errado (2017). Ela destaca que para combater o racismo, é necessário mais do que aceitar a afirmação que existe racismo na sociedade brasileira:
— A princípio todo mundo concorda (com a afirmação), porém atos racistas continuam acontecendo, inclusive dentro do audiovisual gaúcho.
Para Camila, as medidas práticas e ações concretas para ampliar presença de profissionais negros no setor começam pela comunicação:
— Esse é um dos caminhos, ter condições de acesso e espaços nos mesmo locais e veículos, porque não só estamos dizendo que, sim, existe racismo e vida que segue. Para minha vida seguir adiante, preciso de aliados na luta, preciso que pessoas antirracistas se posicionem, que pessoas não negras abram mão de seus privilégios, e aí iremos construir em conjunto uma nova realidade do nosso audiovisual gaúcho, no qual eu faço parte, assim como as minhas irmãs e irmãos de cor.
Conforme o cineasta Davi de Oliveira Pinheiro, maior diversidade entre cabeças de equipe (como produção, direção e roteiro) é essencial. Ele aponta que, nesse sentido, os indutores e cotas em futuras chamadas públicas são necessárias.
— Para isso, a natureza aristocrática do audiovisual precisa ser abandonada. Os eventos recentes, por mais tristes que sejam, jogam luz sobre uma discussão que, se não era velada, vinha sendo postergada. É importante lembrar que o racismo é ambidestro e não está ligado à uma única forma de governo, e sim à objetificação do ser humano introjetada em nossa cultura.
Integrante do Coletivo Macumba Lab, a diretora, produtora e roteirista Juliana Balhego sublinha que os cursos das funções audiovisuais costumam ser pouco acessíveis. Uma saída, conforme a cineasta, seriam projetos para promover a democratização do audiovisual, focando na especialização de profissionais negros. Ela cita como exemplo o edital Curta Afirmativo, lançado em 2012, direcionado para jovens cineastas negros.
— Vejo que é muito discutido a questão da representatividade, mas isso só fica na frente da tela na maioria das vezes. Não há muitos profissionais negros nos cargos de chefia — pontua. — Cinema é muito elitista, é muito difícil fazer e finalizar um filme.
A atriz e produtora Kaya Rodrigues (também integrante do Macumba Lab) corrobora com Juliana e vê um quadro pouco inclusivo no Estado, em que há apenas uma universidade pública com curso de cinema — UFPEL, em Pelotas.
— Isso faz um recorte sócio-racial que se manifesta nas telas e também atrás delas. Seria muito importante que ao menos na capital houvesse um curso de cinema gratuito — destaca.
Kaya reforça que as universidades privadas precisam incluir professores negros no seu corpo docente dos cursos de cinema:
— É difícil imaginar uma mudança real sem que o espaço que forma nossos profissionais de cinema também se reavaliem. Que narrativas são passadas nesses cursos? O que os profissionais têm aprendido?
Ela também aponta que, pra além disso, o cinema gaúcho precisa passar por uma autocritica e um resgate de si de uma maneira ampla.
— Até mesmo quando filmes com passagens históricas são realizados é suprimido a imagem das pessoas negras. E não existe história gaúcha sem negritude. Impossível pensar em Revolução Farroupilha e esconder os lanceiros negros. Mas isso ainda acontece — lamenta.
Por fim, Kaya espera que a live da APTC do dia 3 de julho sirva para ligar um alerta:
— Que narrativas estamos contando? Acredito que o cinema gaúcho só tem a ganhar com a reflexão. Vai fazer nossas historias nas telas ficarem mais ricas e interessantes.
Nota do coletivo Macumba Lab
O racismo nos segrega e impede que pessoas negras acessem espaços de poder. A universidade é um espaço de poder, bem como a produção audiovisual. Pessoas brancas historicamente acessam esses espaços, comandam essas instituições. Por isso a luta antirracista precisa que pessoas brancas saiam do seu lugar de conforto. Saiam da sua bolha de conhecidos para ouvir pessoas que não fazem parte do seu círculo social. A luta antirracista precisa que os brancos, que chegarem antes de nós nos espaços de poder, empreguem pessoas negras, leiam a produção intelectual de pessoas negras e tensionem instituições das quais fazem parte para que pessoas negras ocupem todos os espaços, dos sets de cinema à universidade.
Pessoas brancas ocupam um lugar de privilégio enorme dentro do cinema gaúcho, um lugar que precisa ser usado em favor da luta antirracista. Um discurso que taxa o cinema não-europeu de "cinema de senzala" vem da prática de sempre subalternizar personagens e realizadores negros e negras.
Agora é o momento para mudarmos isso. A responsabilidade de enfrentar o racismo é de todos. Pessoas negras precisam ter voz e poder de criação sobre as narrativas da produção audiovisual gaúcha. Isso é fundamental para a democratização do setor, em todas suas esferas. É um passo à descolonização, é o mínimo. Alguns caminhos para a realização desse objetivo:
- Criação de políticas públicas que possibilitem o acesso de jovens negros e negras e indígenas a cursos de Cinema de Universidades Públicas e Privadas.
- Políticas públicas que levem em consideração nossas vivências e especificidades. Pessoas trans negras têm muito mais dificuldade de acessar políticas públicas que pessoas cis.
- Criação de bolsas de pesquisa para registrar e preservar a memória da produção negra e indígena audiovisual no Estado.
- Políticas públicas de formação de profissionais negros e indígenas em audiovisual.
- Descentralização do circuito exibidor, realização de sessões de cinema em bairros periféricos e pontos de cultura em Porto Alegre e região.
- Realização de atividades de formação de público voltadas para pessoas periféricas.
- Criação de cotas e/ou indutores raciais em editais públicos de Cultura no Rio Grande do Sul.
- Paridade racial nos comitês de seleção de editais públicos no Rio Grande do Sul.
- Paridade racial em Curadoria e Júris de festivais de cinema no Estado.
- Na esfera privada, possibilidades de estágio de pessoas negras em produtoras audiovisuais, distribuidoras e players.
- Na esfera privada, contratação de profissionais negros em produtoras audiovisuais, distribuidoras e players.
- Na esfera privada, contratação de profissionais negros em sets de cinema. Não apenas em posições secundárias, mas também como cabeças de equipe.
- Paridade racial em elencos de produtos audiovisuais realizados no Rio Grande do Sul.
- Que nada seja discutido sobre nós sem nós.