A diretora Camila de Moraes fez do cinema um espaço de luta contra o racismo. À frente da corregedoria-geral da Justiça do TJ-RS, a desembargadora Denise Cezar tenta acabar com o tabu sobre a adoção tardia. Já a escritora Lau Patrón usou a história de seu filho, João Vicente, para colocar a inclusão e a empatia no centro do debate. As três vencedoras do 4º Prêmio Donna Mulheres que Inspiram, escolhidas pela equipe da Revista Donna entre oito finalistas, decidiram sair da zona de conforto para transformar realidades. Saiba o que motivou as premiadas a levantar suas bandeiras e encarar os problemas de frente.
A mulher certa
Camila de Moraes conhece a potência da cultura para transformar realidades. A cineasta de 31 anos nasceu em meio à arte e à militância do movimento negro: filha da atriz Vera Lopes e do jornalista e escritor Paulo Ricardo de Moraes, cresceu em uma família engajada nas lutas sociais e ativa na cena cultural gaúcha. E por isso não é surpresa ela ter trilhado seu próprio caminho no cinema sem medo de promover debates profundos sobre racismo e desigualdade.
– Fui criada assim, e isso fez com que continuasse militando, buscando melhores condições de vida para as pessoas. Quando vou fazer um filme, preciso falar sobre pessoas negras que são mortas desde sempre. Estamos em 2019 e continuamos vendo essas mortes. A minha vida é sempre por conta de uma luta – explica a cineasta, radicada em Salvador há nove anos.
No ano passado, Camila entrou para a história do cinema brasileiro ao tornar-se a segunda diretora negra a ter um filme exibido em circuito comercial, com O Caso do Homem Errado – a primeira foi Adélia Sampaio, de Amor Maldito (1984). Mas não parou por aí: o longa ganhou ainda mais reconhecimento no Brasil ao estar entre os pré-selecionados pelo Ministério da Cultura para concorrer ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019.
O documentário levou às telas uma conhecida história ocorrida em Porto Alegre que retrata a violência policial e levanta discussões sobre o assassinato de negros no Brasil. Em 1987, o operário Júlio César de Melo Pinto foi executado por policiais militares ao ser confundido com um assaltante de um supermercado. O caso teve grande repercussão e foi documentado pelo repórter fotográfico Ronaldo Bernardi, de Zero Hora. Ele acompanhou Júlio César sendo colocado em uma viatura policial, vivo, no bairro Partenon. Logo depois, ao chegar ao Hospital de Pronto Socorro, o operário apareceu morto com um tiro no tórax.
Camila não era nem nascida naquela época, mas desde a infância sabia do "caso do homem errado" – Júlio César era padrinho de seu irmão mais velho. Cresceu com a certeza de que essa história precisava ser contada às novas gerações, já que os dados seguem estarrecedores: segundo o último Atlas da Violência, divulgado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de homicídios entre negros cresceu mais de 23% entre 2006 e 2016, enquanto os assassinatos de pessoas não negras diminuiu 6,8%.
– A gente está buscando ter o registro da nossa memória. Estou lutando pelas narrativas, para poder contar as nossas histórias. Nosso trabalho foi muito gratificante porque fizemos debates, plantamos algumas sementes, encontramos pessoas que podem ser multiplicadoras – explica a cineasta.
– Queremos mostrar outros olhares para todo mundo. Falar para as pessoas negras que somos fortes, que podemos estar onde quisermos. E para as pessoas brancas que é essa a realidade, que precisamos estar juntos para mudar a situação. Não adianta falar só para o gueto, precisamos que as outras pessoas ajudem. Negros e brancos juntos na causa, na luta. Lutamos por uma sociedade antirracista.
Foi na faculdade de Jornalismo, há 10 anos, que ela decidiu abordar o caso em uma matéria investigativa, registrando depoimentos com sua filmadora. Dali surgiu a ideia de um curta-metragem, só que o caminho para tirar o projeto do papel não foi nada fácil. Camila e sua equipe ouviram recorrentes "nãos", seja de possíveis patrocinadores ou negativas dos processos via edital. Em 2015, partiram para o financiamento coletivo e acabaram não atingindo a meta para a realização da produção. A viabilização do documentário se deu somente no ano seguinte, quando uma produtora abraçou o projeto. E a estreia não poderia ser em outro lugar: o Festival de Gramado. No circuito comercial, o filme chegou em março de 2018 – uma semana após a execução da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro.
– Buscamos estratégias para mostrar que não adianta fechar as portas, junto com a gente está vindo muito mais. Ganhamos visibilidade, público, mídia, a questão de ser mulher negra chamou atenção. Daí mais festivais começaram a nos convidar para participar. Já estivemos em mais de 20 – relembra a diretora.
E o racismo, frisa Camila, não ficou somente nas telas. Única presença negra em inúmeros festivais, a cineasta já teve a foto "esquecida" nos materiais de divulgação de uma mesa de debates. Participou de encontros em hotéis e precisou informar o número do cartão de crédito para garantir acesso – nenhum convidado passou pela mesma situação. Também foi deixada de lado em matérias que abordavam filmes feitos por mulheres em determinados circuitos, conta:
– Recebo muitas mensagens de mulheres negras falando da importância de estar onde estamos. Às vezes, por mais questões de racismo que a gente passe, que seja difícil, é importante estarmos ali. Porque, quando as meninas chegarem lá, vai estar mais fácil, mais acessível. São formas de invisibilizar a nossa participação, e isso fazem desde o início com a população negra no Brasil. No audiovisual, não é diferente. A nossa luta é por ser tratada de forma digna, com respeito.
A meta de Camila neste ano é levar O Caso do Homem Errado para todos os Estados brasileiros – o filme já foi exibido em 15. Em março, o longa também passou a integrar a programação do Canal Brasil. E vem novidade por aí: a cineasta está buscando parceiros para um novo projeto audiovisual. Ela não adianta detalhes, mas não restam dúvidas: aguarde mais um daqueles projetos que propõem reflexões necessárias para mudar a realidade fora das telas.