Pode até parecer uma contradição: uma série sobre a obsessão pela aparência que não é nada superficial. Eis Nip/ Tuck (2003-2010), que teve suas seis temporadas adicionadas recentemente pelo Amazon Prime Video.
Se você nunca viu este que é um dos tantos seriados criados pelo estadunidense Ryan Murphy, o mesmo de Glee, American Horror Story, The Politician, Pose, Ratched e Dahmer: Um Canibal Americano, aqui vai um breve resumo de Nip/Tuck — cujo título alude a uma expressão em inglês que significa "estica e puxa", ou seja: cirurgia plástica para remover sinais da idade.
Ambientada em Miami, a série mistura drama, comédia, romance e policial para narrar a história de dois amigos sócios em uma clínica de cirurgia plástica: Sean McNamara ( Dylan Walsh, que antes fez os filmes Congo e O Padrasto e depois as séries Unforgettable e Superman and Lois) e Christian Troy (Julian McMahon, que foi o Doutor Destino nas aventuras cinematográficas do Quarteto Fantástico e atuou em seriados como Charmed, Os Fugitivos e FBI: Os Mais Procurados).
Pai de um adolescente e de uma menininha, o ético Sean é casado com Julia, que namorou Christian no passado. Esse papel é vivido por Joely Richardson, filha da atriz Vanessa Redgrave e do cineasta Tony Richardson, irmã da também atriz Natasha Richardson, que morreu em 2009, em consequência de um acidente enquanto esquiava. Já o doutor Troy é o garanhão que dorme com as próprias clientes (convém avisar os mais pudicos: as cenas de sexo são quentes). Aqui e ali, um inveja o outro.
Cada um dos cem episódios começa, geralmente, com um dos médicos pedindo ao paciente:
— Conte-me o que você não gosta em si mesmo.
Na abertura da segunda temporada, por exemplo, uma lésbica com o rosto totalmente desfigurado por um tiro decide se submeter à primeira de várias operações para que "as criancinhas parem de chorar quando olham para ela". Este é o drama do episódio — a parte cômica fica por conta de uma segunda paciente, a sogra do doutor McManara, Erica (interpretada por Vanessa Redgrave).
No final dessa temporada, a série ganhou um atrativo para o público brasileiro: entrou em cena o cirurgião Quentin Costa, encarnado pelo ator carioca Bruno Campos, do filme O Quatrilho (1995), que participaria de 16 episódios.
Pelo menos nos seu primeiros anos, Nip/Tuck conseguia ser cínica, grotesca — nas detalhadas cirurgias plásticas (uma delas é ironicamente embalada pelo sucesso oitentista Eyes Without a Face, de Billy Idol) — e, ao mesmo tempo, sensível. Talvez a sua síntese seja o personagem do doutor Troy, um canalha com as mulheres e quase negligente com o filho que se viu forçado a assumir como seu. Quase — e é esse "quase" que faz toda a diferença, para ele e para a série.
Por ironia, Nip/Tuck chegou ao fim no mesmo ano, 2010, em que foi lançado o Instagram, a rede social que estimula e capitaliza dois sentimentos bastante trabalhados pela série: a vaidade e a inveja. Fica a dica de uma leitura complementar: a história em quadrinhos Na Sala dos Espelhos: Autoimagem em Transe ou Beleza e Autenticidade como Mercadoria na Era dos Likes & Outras Encenações do Eu, da sueca Liv Strömquist, publicada no Brasil pela Quadrinhos na Cia. (tradução de Kristin Lie Garrubo, 168 páginas, R$ 79,90). É a mesma autora de A Origem do Mundo: Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva vs. o Patriarcado e A Rosa Mais Vermelha Desabrocha: O Amor nos Tempos do Capitalismo Tardio ou Por que as Pessoas se Apaixonam tão Raramente Hoje em Dia. Agora, partindo da obsessão coletiva por Kylie Jenner, Strömquist reflete sobre o escravizador rolar da tela do celular, a preocupação doentia com o corpo, as razões da nossa hiperexposição em selfies... Enfim, sobre a tirania da suposta beleza.