Entrou em cartaz na Netflix um pequeno grande filme sobre como os homens de bem podem se corromper, especialmente sob certas circunstâncias. No caso de O Destino de Haffmann (Adieu Monsieur Haffmann, 2021), é a ocupação nazista em Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Mas poderia ser uma pandemia, uma catástrofe natural, um ambiente de polarização política ou até um experimento de sobrevivência, como aquele que desanda no canadense O Declínio (2020).
Ainda que não seja curto (tem uma hora e 55 minutos de duração), digo que O Destino de Haffmann é um pequeno grande filme porque não apareceu no circuito de premiações, não tem mais do que cinco ou seis atores com falas e se passa quase todo dentro do mesmo cenário — ou pelo menos dentro da mesma casa.
Apresentado no RS na 13ª edição do Festival Varilux de Cinema Francês, no ano passado, o filme foi dirigido por Fred Cavayé, que tem no currículo o policial À Queima-Roupa (2010) e as comédias Um Amável Pão-Duro (2016) e Nada a Esconder (2018), a versão francesa do italiano Perfeitos Desconhecidos (2016). Em O Destino de Haffmann, que é baseado em uma peça de Jean-Philippe Daguerre, ele muda completamente de território.
A história se passa em 1941, durante a Segunda Guerra, na Paris sob ocupação alemã. François Mercier (interpretado por Gilles Lellouche, que será Obelix na próxima aventura cinematográfica de Asterix, neste ano) é um homem comum que sonha em ter um filho com a esposa, Blanche (Sara Giraudeau, de Os Tradutores). Ele trabalha para um talentoso joalheiro, o Sr. Haffmann (Daniel Auteuil, de O Oitavo Dia e Caché) — que é judeu. O recrudescimento da perseguição nazista força a partida da família de Haffmann e um rearranjo das relações de poder na joalheria, com consequências cada vez mais complicadas.
Se a origem teatral engessa um pouco o filme do ponto de vista formal, por outro lado permite que o trio de atores se destaque em uma trama sobre o duelo ganância versus integridade no contexto de uma ferida francesa não cicatrizada: a do colaboracionismo na Segunda Guerra, quando governantes e cidadãos auxiliaram ou cooperaram com as tropas invasoras.
Durante um evento de lançamento do Festival Varilux, no Rio, Gilles Lellouche, 50 anos, falou sobre a importância de contar histórias como a de O Destino de Haffmann:
— A História se irradia de geração para geração, graças ao testemunho das pessoas que viveram. Mas hoje, na França, 89 dos deputados eleitos são da Reunião Nacional (nome atual da Frente Nacional, partido de extrema direita de caráter conservador e nacionalista), declarações e pichações antissemitas são feitas à luz do dia, a juventude está esquecendo a existência do Holocausto. Daí a importância de fazermos filmes como O Destino de Haffmann, para consertar cabeças que estavam enviesadas.
O ator também comentou sobre como foi encarnar Mercier:
— Esse personagem foi um presente envenenado. Não tenho o barato de dormir no personagem, mas neste caso aconteceu uma coisa diferente. A pandemia interrompeu as filmagens, então precisei ficar dois meses e meio tolerando aquela imundície, convivendo com a feiura do comportamento daquele homem. Tive de manter não apenas o bigode, mas também sua personalidade. Acabei intoxicado, uma raiva tomou conta de mim e respingou na minha família.