Sempre que ocorre um massacre em uma escola dos Estados Unidos, como o de terça-feira (24) em Uvalde, no Texas — onde um rapaz de 18 anos matou com tiros de rifle 19 crianças e dois adultos —, vem à mente Tiros em Columbine (Bowling for Columbine), vencedor do Oscar de melhor documentário. Por uma triste coincidência, o filme dirigido por Michael Moore acaba de completar seu 20º aniversário: a primeira exibição foi realizada no dia 16 de maio de 2002, no Festival de Cannes (França), que concedeu um prêmio especial ao cineasta estadunidense. Esse título está indisponível no streaming, mas foi lançado em DVD pela Alpha Filmes (uma rápida busca em sites de compras encontrou várias ofertas).
O ponto de partida do documentário é a tragédia que teve como palco uma instituição de Ensino Médio no Estado do Colorado, a Columbine High School. Em 20 de abril de 1999, dois estudantes assassinaram 12 colegas e uma professora e depois se suicidaram. Foi a partir daquele ano que o jornal The Washington Post passou a fazer um levantamento dos ataques com armas de fogo em colégios do país — não há estatísticas oficiais.
Os números indicam que as coisas só pioraram de lá para cá, a ponto de 2021 ser o ano com mais registros: 34. A chacina de Uvalde é a segunda maior desde 1999. Em 14 de dezembro de 2012, 20 crianças entre seis e sete anos e seis adultos foram mortos na escola Sandy Hook, no Connecticut. No Ensino Superior, a matança mais vultuosa foi a da Universidade Virginia Tech, em 16 de abril de 2007. Um estudante matou 32 colegas e professores antes de tirar a própria vida.
Por que isso acontece com tanta frequência? Por que as autoridades não tomam medidas mais drásticas para dificultar o acesso a armas de fogo? Por que 25 dos 50 Estados não exigem licença para o porte de armamento em público?
São perguntas que Michael Moore tenta responder, com a contundência e a ironia habituais — é dele também Fahrenheit 11 de Setembro (2004), documentário premiado com a Palma de Ouro em Cannes no qual investiga as relações perigosas entre os negócios da família do então presidente George W. Bush e milionários sauditas como o terrorista Osama Bin Laden.
De acordo com Tiros em Columbine, não é uma sanha homicida o que explica a afeição dos estadunidenses por pistolas, revólveres, espingardas e rifles, mas uma cultura do medo, difundida desde a chegada dos pioneiros europeus, no século 17 — e reforçada na guerra ao terror deflagrada pelo governo Bush após o 11 de Setembro.
Como de costume, o diretor equilibra a discussão sobre assuntos sérios com uma roupagem pop, incluindo músicas dos Beatles e dos Ramones e desenhos animados dos criadores de South Park. Há um pouco de humor e um tanto de horror. Num momento, Moore entrevista o lunático fazendeiro irmão de um dos terroristas de Oklahoma. No outro, está no Canadá, verificando se os moradores de Toronto realmente deixam as portas de casa abertas. No intervalo, mostra imagens das sangrentas intervenções dos EUA em países como Vietnã, Chile, El Salvador, Kosovo e Iraque.
O documentário exibe cenas inéditas e chocantes registradas pelas câmeras de segurança do colégio de Columbine, leva dois sobreviventes para "devolver" à loja K-Mart as balas alojadas em seus corpos e conversa com o roqueiro Marilyn Manson sobre a possível influência de sua música sobre os jovens assassinos. É do bate-papo com Manson que Moore ruma para a Cultura do Medo, título do livro do professor de Sociologia Barry Glassner.
Glassner aponta estatísticas impressionantes: enquanto o número de homicídios caíra em 20% nos últimos anos, a cobertura de crimes pela imprensa subiu 600%. Moore, então, dispara contra a mídia que propaga o pavor (ao realizar reportagens sobre o perigo das escadas rolantes, por exemplo) e estimula o racismo — outra chaga nos Estados Unidos.
— Uma coisa com a qual sempre se pode contar é o medo que os brancos têm dos negros — diz o documentarista.
Daí que não causa surpresa — apenas revolta — quando, no fim, o ex-ator Charlton Heston (1923-2008), o policial mexicano vítima de preconceito no clássico A Marca da Maldade (1958), à época de Tiros de Columbine presidente da Associação Nacional do Rifle, afirma que a posse de armas é um direito garantido pelos " brancos sábios" que fundaram o país e que uma das razões da violência nos EUA pode ser sua "etnia mista".