A estreia do segundo filme inspirado na série Downton Abbey (2010-2015) estava prevista para o Natal deste ano, mas acabou de ser adiada em três meses. Enquanto março de 2022 não chega, a dica é ver ou rever o primeiro longa-metragem, disponível em Telecine, Google Play e YouTube.
A sequência de abertura de Downton Abbey (2019) serve como uma analogia do processo de aclimatação ao filme pelo espectador que não assistiu às seis temporadas do seriado britânico. Acompanhamos a longa jornada de uma carta enviada pela realeza à enorme casa de campo da família Crawley em Yorkshire, na Inglaterra. Ela passa de mãos em mãos, muitas mãos, pega um trem, um carro e enfim chega ao destinatário. Essa viagem nos transporta para uma época em que as informações e as transformações corriam muito mais devagar do que hoje, estamos de volta a um tempo em que as fronteiras sociais não eram porosas, ainda que próximas: ricos e pobres ocupam a mesma propriedade, mas os primeiros flanam por espaços amplos com figurinos suntuosos, e os outros, com os uniformes da criadagem, apertam-se em uma cozinha e em corredores de cores pálidas. As trocas constantes de portadores da missiva e de nomes nos créditos alertam sobre a quantidade de meandros da nobreza e, sobretudo, de personagens com os quais teremos de nos familiarizar: serão 40, 50, talvez 60!
A boa notícia é que, decorridos alguns minutos em que podemos ficar perdidos em meio à saraivada de diálogos — todos, felizmente, carregados pela fina ironia e pelo delicioso sotaque dos britânicos —, as coisas se assentam. Downton está em polvorosa porque o rei George V e a rainha Mary farão uma visita que inclui um jantar e o pernoite ("Não vamos parar de trocar de roupas!", diz, em um tom de lamento que não esconde o orgulho, uma das aristocratas).
Paralelamente, vão se desenhando outras tramas, outros dramas. Há um viajante misterioso, o capitão Chetwode, preocupado com o republicanismo irlandês do pai viúvo Tom Branson, um motorista que conseguiu cruzar a barreira ao casar com Sybil, uma das três filhas de Robert Crawley (Hugh Bonneville), o lorde Grantham. A matriarca Violet — interpretada por Maggie Smith, sempre um prazer de ver e ouvir (pontuará o filme com tiradas do tipo "Sarcasmo é a pior forma de inteligência" e "Eu nunca discuto, eu explico") — precisa lidar com uma prima, Maud, que parece inclinada a privilegiar a dama de companhia como herdeira. O mordomo Barrow, indignado por não poder servir a corte real — que trará seu próprio staff —, afasta-se de Downton e resolve tentar dar vazão a sua sexualidade reprimida: ele é um homossexual, em um período (1927) que isso ainda era considerado crime na Inglaterra (só deixou de ser 40 anos depois).
Com ritmo e elegância, o diretor Michael Engler e o roteirista Julian Fellowes (criador do seriado e vencedor do Oscar pelo script de Assassinato em Gosford Park, de 2001) costuram essas linhas narrativas, sem estendê-las em demasia: decidido um conflito, o personagem logo é envolvido no próximo. E muitos desses conflitos são atemporais — alguns até soam bastante contemporâneos. O mais evidente, claro, é o de classes, tratado em Downton Abbey com uma nostalgia que deve torcer narizes de quem entende o trabalho como a mera exploração da mão de obra: no castelo dos Crawley, os patrões são amistosos, e os serviçais "sabem o seu lugar" e têm orgulho de suas atividades — para demonstrar isso, um dos empregados, Mr. Molesley (Kevin Doyle, cativante em seu desajeito), chega a romper regras de conduta.
Por outro lado, não há nada de saudosista na forma como o filme retrata as personagens femininas. Pelo contrário. Enquanto os homens brincam de realeza e nobreza, quem exerce de fato o poder são as mulheres. É a dama de companhia Anna (Joanne Froggatt) que encabeça o plano de combate à equipe trazida por George V, com a participação decisiva da governanta, Mrs. Hughes (Phyllis Logan) e da cozinheira, Mrs. Patmore (Lesley Nicol). É a rainha Mary (Geraldine James) que persuade o marido a retirar um convite irrecusável mas desprovido de empatia. É a auxiliar Daisy (Sophie McShera) quem tem a coragem de questionar o status quo. É Lady Mary (Michelle Dockery) quem sai na chuva para fazer as coisas acontecerem.