Desde a estreia de Luca no Disney+, na sexta-feira (18), críticos de cinema e ativistas LGBT+ têm feito uma pergunta: a nova animação da Pixar é um filme gay? Vamos direto ao ponto: depende.
Como convém a uma obra de arte, Luca está aberto a interpretações. Que podem variar de acordo com o olhar de cada espectador; podem sofrer o peso da bagagem cultural, emocional e social que cada um de nós carrega quando nos sentamos para ver um filme.
O desenho animado tem elementos — internos e mesmo externos, como a data de lançamento, às vésperas do Dia do Orgulho LGBT+, em 28 de junho — que permitiriam trocar a interrogação por um ponto final. Por outro lado, o contexto histórico e o discurso do diretor, o italiano Enrico Casarosa, reforçam a dúvida. Seja como for, estamos diante de um filme extremamente afetuoso e divertido, mas também assertivo em suas mensagens sobre amizade, autoconfiança, preconceito e aceitação.
Luca é o 24º filme da Pixar, que em 2021 está comemorando 35 anos. O estúdio nasceu em 1979 como parte da Divisão de Computadores da Lucasfilm. Mas foi em 1986, após ser comprado por Steve Jobs (1955-2011), cofundador da Apple, que oficialmente o grupo virou uma empresa independente de animação digital. Data daquele ano o primeiro curta-metragem, Luxo Jr., de John Lasseter, que apresenta a história do abajur que se tornou a marca registrada do estúdio. A estreia em longas aconteceu com o clássico instantâneo Toy Story, em 1995, também dirigido por Lasseter. Ao todo, a Pixar acumula 23 Oscar (18 em longas e cinco em curtas) e cerca de US$ 15 bilhões arrecadados nas bilheterias.
Nos últimos anos, o estúdio vem procurando ampliar a diversidade em suas produções - tanto nas tramas quanto nos bastidores. Viva: A Vida É uma Festa (2017), por exemplo, celebrou a cultura e as tradições do México. O oscarizado curta Bao (2018) foi escrito e dirigido pela chinesa Domee Shi e aborda hábitos familiares e a culinária de seu país. Soul (2020) trouxe o primeiro protagonista negro (embora caiba dizer que ele passa bastante tempo como uma alminha azul).
Agora, a Pixar viaja para a Itália, temperando o inglês do idioma original com músicas de Gianni Morandi e Rita Pavone e expressões e frases como "Santa Mozzarella!", "Silenzio, Bruno", "Ma sei scemo?" ou "Pronti, partenza, via!". Coautor do roteiro e estreante na direção de longas, Enrico Casarosa — indicado ao Oscar de curtas pelo belo A Lua (2011) — situou a história na fictícia Portorosso, cidadezinha litorânea da região de Cinque Terre, perto de Gênova. A diversidade também é temática: a Pixar deixa de lado a morte, o luto, o esquecimento e a obsolescência, tão presentes em títulos como Toy Story, Up: Altas Aventuras, Wall-E, Divertida Mente, Viva, Dois Irmãos, Soul...
Estamos em um lindo verão, realçado pelo laranja do céu, pelo azul do mar e pelo verde das encostas. Luca (voz de Jacob Tremblay) é um monstro marinho de 13 anos, inventivo e curioso — especialmente sobre o mundo da superfície, apesar (ou por causa) dos alertas de seus pais, Lorenzo e Daniela, sobre o perigo representado pelos humanos. A curiosidade vence o medo e o juízo quando Luca conhece outro adolescente, o independente e entusiasmado Alberto (dublado por Jack Dylan Grazer), louco para se divertir em terra firme, tomando gelatos e passeando de Vespa — as célebres motinhos italianas fabricadas a partir de 1946.
Ao saírem da água, Luca e Alberto assumem formas humanas e passam a interagir com a espevitada filha de um pescador, Giulia, uma estudante em Gênova que, nas férias de verão, busca, enfim, ganhar uma competição de triatlo (nadar, pedalar e comer macarronada). Seu maior rival é Ercole, o valentão local, um sujeito mais velho do que aparenta ser (e aqui há um recado de como a infância e a adolescência precisam ser protegidas da intromissão dos adultos).
É fácil enxergar em Luca uma alegoria sobre a vivência de boa parte da população LGBT+. O tempo todo, Luca e Alberto precisam esconder quem são para serem aceitos. Convivem com o temor de terem sua real natureza — sua real sexualidade, por assim dizer — descoberta. Os pais de Luca, por sua vez, preocupam-se com a possibilidade de a intolerância descambar para a violência.
Já a ambientação na Itália e a aproximação entre Luca, mais imaturo sobre a vida, e Alberto, mais experiente, suscitaram comparações com o romance homossexual vivido por Timothée Chalamet e Armie Hammer em Me Chame pelo seu Nome (2017), filme que, por coincidência, tem como diretor um xará do protagonista da Pixar: Luca Guadagnino.
Em entrevistas, Enrico Casarosa tem sido categórico: disse que a história, baseada em suas memórias na mesma região, é "sobre uma amizade antes que namoradas e namorados compliquem as coisas", em um período da vida "anterior ao amor romântico". É um filme sobre crianças quebrando regras e descobrindo que o mundo é maior do que pensamos.
E, de fato, também é maior o alcance desta fábula. Os monstros marinhos que vivem apartados dos humanos, com medo de serem desprezados, humilhados ou até agredidos, podem ser vistos como minorias étnicas ou religiosas, imigrantes ou refugiados. Mas o diretor diz entender quem vê Luca como uma obra eminentemente gay: "Essas teorias mostram o quanto nós queremos representatividade".
Dito isso, Luca frustra expectativas mas confirma uma tradição. A Disney, dona da Pixar, nunca deu protagonismo a personagens homossexuais — à exceção do curta da Pixar Segredos Mágicos (Out, 2020), que é exatamente sobre a dificuldade de um jovem contar aos pais que tem um namorado. A princesa Elsa, de Frozen (2013), foi reivindicada pelo movimento LGBT+, mas Frozen 2 (2019) não trouxe nenhum tipo de confirmação, apesar dos versos da canção Into the Unknown (Rumo ao Desconhecido) sugerirem o cruzamento de uma fronteira histórica. (Por outro lado, não deixa de ser uma revolução uma princesa Disney que não depende de um par romântico, a exemplo do que a Pixar já havia feito em Valente, de 2012.)
É verdade que não são muitos os personagens gays em animações. Há o casal de lésbicas April Sink e Miriam Forcible de Coraline (2009), do estúdio Laika, o Mitch de ParaNorman (2012), da mesma produtora, o viking Gobber, da franquia Como Treinar seu Dragão (2010-2019), da DreamWorks, a Rubi e a Safira de Steven Universo (2019), do Cartoon Network, Katie, a protagonista de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (2021), da Sony. Mas a Disney parece ter mais problemas para lidar com o assunto.
A empresa costuma alardear a presença de personagens gays, a ponto de classificá-los como "primeiro" mais de uma vez — foi assim com a animação Zootopia (2016), com a versão estrelada por atores de A Bela e a Fera (2017) e com o recente Cruella (2021), por exemplo —, mas os momentos dedicados a valorizar a diversidade sexual passam quase despercebidos ou são irrelevantes para a trama. As referências feitas por tipos coadjuvantes são muito sutis, as cenas são muito breves — como o rápido beijo lésbico ao fundo de Star Wars: A Ascensão Skywalker (2019). Ou, então, a Disney emprega pompa e circunstância para anunciar algo que se revela minúsculo — como o homem comum de luto interpretado por Joe Russo em Vingadores: Ultimato (2019), dirigido por ele e seu irmão, Anthony.
É como se a Disney quisesse servir a dois patrões. Por um lado, vende uma imagem de inclusão e diversidade — dois valores em alta no meio empresarial e no tribunal das redes sociais — ao acenar para a comunidade LGBT+. Por outro, cuida para que seus filmes — seus produtos, na verdade — não sofram censura ou boicote nos países (mercados) onde a homossexualidade é inibida ou mesmo criminalizada.
Nesse sentido, é exemplar o caso de Artie, o sujeito obcecado por moda de Cruella. O ator que o interpreta, John McCrea, que é gay, declarou o seguinte sobre o personagem (e que, de certa forma, retomando o início deste texto, também vale para Luca):
— Depende de para quem você está perguntando, eu suponho, mas para mim, sim, é oficial: ele é homossexual. Mas não vemos seus casos amorosos. Não há aspecto social no personagem. Não é algo que dê para afirmar em cheio.