Nas últimas nove edições do Oscar, apenas uma vez a categoria de melhor longa de animação não foi vencida pela Disney ou pela Pixar (subsidiária da primeira): em 2019, quando Homem-Aranha no Aranhaverso levou a estatueta para a Sony Pictures Animation (curiosamente, em uma parceria com a Marvel, que também faz parte do conglomerado Walt Disney). O mesmo estúdio lançou recentemente, na Netflix, um forte candidato à premiação da Academia de Hollywood em 2022: A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas.
O filme tem entre os produtores Christopher Miller e Phil Lord, que também estavam por trás de Homem-Aranha no Aranhaverso. O roteiro foi escrito por dois dos roteiristas que passaram por uma série animada da Disney, Gravity Falls (2012-2016), Mike Rianda e Jeff Rowe — o primeiro assina como diretor, e o segundo, como codiretor (ambos estreantes na função).
A herança desses dois mundos transparece em A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (The Mitchells vs the Machines), que cozinha mais um punhado de ingredientes usados em outras receitas. Só que faz isso de uma forma tão alucinada quanto afetiva, que o prato servido nunca parece requentado, mas, sim, uma iguaria única.
Os personagens principais lembram muito — inclusive fisicamente — a família de Os Incríveis (2004), o segundo dos 11 desenhos da Pixar a ganharem o Oscar. A diferença é a ausência de superpoderes, embora alguns dos Mitchells até acreditem que os possuem. Temos um pai corpulento, Rick, bastante apegado ao passado (é um sujeito analógico, que prefere chaves de fenda a chaves de acesso); uma mãe, Linda, que não é elástica, mas se desdobra para cuidar da casa; uma filha adolescente, Katie, cujo talento (como animadora) o pai não enxerga e que, mais tarde, será a catalisadora de um campo de força; e Aaron, caçula como o Flecha, mas nem um pouco apressado. Pelo contrário: seu tempo é o dos dinossauros. E, em vez de correr porta afora, adora a companhia da mana. Se não há um bebê superpoderoso como Zezé, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas entra com um pug estrábico que responde por alguns dos momentos mais hilariantes. E, como em Os Incríveis, pais e filhos terão de se unir para enfrentar os vilões.
Os vilões da animação remetem às referências mais adultas, de O Exterminador do Futuro (1984) a Matrix (1999), com fortes ecos do seriado Black Mirror (surgido em 2011) e do documentário O Dilema das Redes (2020). Rianda e Rowe reforçam o alerta sobre nossa dependência em relação a dispositivos eletrônicos e às redes sociais e sobre a diabólica dobradinha entre comportamento consumista e obsolescência programada. No filme, o mundo vira, literalmente, refém de um celular. Mais precisamente, uma inteligência artificial, a PAL (voz da vencedora do Oscar Olivia Colman no original).
O enredo e o núcleo de personagens permitem que A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas trafegue por gêneros — aventura, comédia, drama, ficção científica — e acerte diferentes alvos. Ora pega mais as crianças (aqui em casa, a Helena, 11 anos, e a Aurora, sete, adoraram), ora atinge os mais velhos, graças a uma série de referências.
Por exemplo, a pisada que um robô PAL dá em um smartphone, imitando o modo com o qual um Exterminador esmagou um crânio humano. PAL, por sua vez, é uma clara referência a HAL, o computador que também se rebela em 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Falando em cineastas consagrados, os curtas realizados por Katie parodiam clássicos: Dial B for Burger homenageia Disque M para Matar (Dial M for Murder), de Alfred Hitchcock, Katie & Aaron é Thelma & Louise, de Ridley Scott. E sintam o naipe das diretoras mencionadas pela garota na inscrição em vídeo para a faculdade de cinema: Greta Gerwig (de Adoráveis Mulheres), Céline Sciamma (Retrato de uma Jovem em Chamas) e Lynne Ramsay (Precisamos Falar Sobre o Kevin).
Para completar, há duas citações musicais de Kill Bill (2003-2004), de Quentin Tarantino: o vídeo com os Mitchells saindo do shopping feito durões dos filmes de ação é ilustrado por Battle Without Honor or Humanity, do japonês Tomoyasu Hotei, popularizada pelo diretor Quentin Tarantino, e quando Linda parte para a briga contra os robôs, toca o trecho com a sirene de Ironside, composta por Quincy Jones para o seriado policial homônimo dos anos 1960 e 1970 (batizado no Brasil de Têmpera de Aço), tema da Noiva sempre que a personagem de Uma Thurman via alguém de sua lista mortal.