A Noruega é admirada pelos altos índices nos rankings sobre democracia e liberdade de expressão. Mas pelo menos um de seus cidadãos acha que o país nórdico virou o fio: Håvard Fossum, o diretor de Meet the Censors (Conheça os Censores, 2020), documentário em cartaz no Amazon Prime Video.
Fossum abre o filme acompanhando uma marcha de neonazistas, com anuência e proteção das autoridades, em uma cidade norueguesa. "Joguem fora a escória!", "Traidores do sangue!", gritam os manifestantes, até que o som desaparece.
— Eu apenas reduzi a loucura — diz Fossum, antes de emendar uma reflexão que alude ao paradoxo da tolerância apontado pelo filósofo Karl Popper (1902-1994): — Parece estúpido enviar metade da polícia do país para cuidar dos nazistas, para que possam expressar livremente suas merdas, sem interrupções. Todo mundo tem que ter liberdade de expressão em uma democracia. Mas você nunca sentiu que isso pode precisar de algum ajuste? É hora de chamar o Estado e simplesmente censurar as mais polarizadoras e perturbadoras expressões?
Três vídeos curtos, feitos via celular, sucedem a observação do diretor. No primeiro, um homem diz que "ser branco é ser um lutador, um cruzado, um conquistador". No segundo, outro sujeito prega a submissão do mundo à sharia, a lei islâmica. No terceiro, é a vez de um pastor despeja misoginia.
— E se a censura se tornou necessária? — indaga Fossum. — Somente para manter nossas sociedades decentes. E se houver uma forma de censura estatal que pudesse realmente funcionar?
É a deixa para um encontro do documentarista com o historiador e bibliófilo americano Robert Darnton, 81 anos, autor de livros como Boemia Literária e Revolução, Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária e Censores em Ação. Darnton afirma:
— As pessoas tendem a ter uma ideia simplificada de censura, como uma luta do bem contra o mal, da liberdade contra a opressão. É um tipo de visão maniqueísta que erra. Tendo estudado a censura sob vários regimes autoritários, devo dizer que estou convencido de que a censura pode ser positiva.
A partir daí, Fossum embarca em uma pequena volta ao mundo, com escalas na África, na Europa, na Ásia e na América do Norte, à procura de exemplos que possam corroborar a afirmação do historiador. Na bagagem, carrega um estilo que remete aos documentários do americano Michael Moore (autor de Tiros em Columbine e Fahrenheit 11 de Setembro) e do inglês nascido em Singapura Louis Theroux (de Meu Filme de Cientologia, No Lar dos Pedófilos e Nos Guetos da Filadélfia): o norueguês é praticamente um personagem, que não se intimida pelo cenário nem se furta de expressar suas opiniões, temperadas por ironias e palavrões, e de tentar constranger alguns dos entrevistados. Também atira para muitos lados. O que começa como um retrato sobre o silenciamento da imprensa em um país africano em guerra civil, o Sudão do Sul, termina com um lamento sobre a mercantilização da política nos Estados Unidos. Entre uma ponta e outra, fala-se de filmes e livros censurados, de medidas para coibir os discursos de ódio e a difamação nas redes sociais, da visão do Ocidente sobre o Oriente e de espionagem e combate ao terrorismo.
Apesar de uma certa falta de coesão, Meet the Censors tem vários atrativos. A cada parada de sua viagem, Håvard Fossum flagra momentos embaraçosos ou espantosos — vide a entrevista com um subsecretário do Ministério da Informação, que explica o "verdadeiro" motivo para o fechamento de um jornal, o Citizen. O filme mostra como a censura é uma arma para governos, sejam ditatoriais ou não, empregada por razões políticas, religiosas, culturais e até econômicas — segundo o filme, o cerceamento do debate sobre aquecimento global nos Estados Unidos atende a interesses do empresariado. Mas Fossum também faz o que Darnton sugeriu: dá oportunidade para os censores explicarem suas motivações, ainda que elas possam apenas intensificar o sentimento de revolta.
Um dos capítulos mais tristes, do ponto de vista de quem vive de assistir a filmes, é o da Índia. Lá, o norueguês documenta as sessões oficiais de censura. Com planilhas de papel à mão, uma equipe vai anotando cenas e diálogos que devem ser suprimidos de obras cinematográficas — no entendimento dos censores, não farão falta. Menos sorte tem Batom Sob Minha Burca (Lipstick Under my Burkha, 2017), da diretora Alankrita Shrivastava. Por unanimidade, o longa-metragem, com cenas de sexo e "obscenidades", foi reprovado. Alankrita teria de lutar na Justiça para conseguir exibi-lo. As justificativas não são explicitadas pelo comitê (o chefe, mais tarde, fala a Fossum sobre a preservação da família, sobre o impacto na sociedade), mas a própria cineasta, antecipadamente, esclarece:
— Sinto que filmes bastante misóginos, em que objetificamos as mulheres, em que a câmera fica somente subindo e descendo o corpo da mulher, e ela continua dançando a "música de um item único", cujo nome em si já é ofensivo, nada acontece com esse conteúdo, que é jogado livremente na televisão, e garotinhas estão assistindo e dançando, internalizando toda a objetificação das mulheres (como abordado no filme francês Mignonnes recentemente). Mas no momento em que você apresenta um ponto de vista alternativo, um ponto de vista mais feminista, é muito problemático.
Ainda na Ásia, Fossum visita o Irã, onde uma escritora e um livreiro falam sobre interdições, e a China, onde um jornalista contesta pontos da narrativa do chamado massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, e onde consegue o depoimento de duas integrantes do 50 Cent Army, um exército sem farda que é pago para alimentar a internet com posts favoráveis sobre o governo do presidente Xi Jinping.
Preocupado em não fazer de seu documentário apenas uma visão eurocêntrica sobre mazelas da África e da Ásia, Fossum também viaja aos Estados Unidos e para a Alemanha. Nos EUA, ao contrário de todos os outros destinos, onde foi recebido por autoridades, toma um chá de banco, literalmente, federal. Só consegue entrevistar um ex-agente da CIA, um ex-servidor público e o ex-chefe da EPA, a agência estatal de proteção ambiental. Na Alemanha, visita um escritório kafkiano do Ministério da Justiça, um setor encarregado de lidar com as denúncias de manifestações racistas, antissemitas, pedófilas etc nas redes sociais. É um lugar onde a burocracia — arquivos impressos de assuntos digitais! — e as necessárias filigranas (como diz um consultor, uma coisa é mostrar uma suástica, outra é mostrar uma suástica sendo socada) sabotam qualquer boa intenção. Além disso, aponta o diretor, as eventuais multas para Facebook, Twitter e outras empresas é um desvio daquilo que realmente importa: "cuidar da sujeira".
E como fazer isso? Håvard Fossum termina o filme como outra ponderação. Se a sociedade chamar o Estado, pode acabar virando alvo de uma "polícia do pensamento". Se decidirmos combater o ódio e a desinformação diariamente, na internet e nas ruas, usando "o diálogo, bons argumentos e o amor", seria ingênuo demais, diz o diretor, enquanto as imagens nos levam de volta ao começo da história, com os neonazistas marchando e gritando "Jogue fora a escória! Jogue fora a escória! Jogue fora a escória!".