Muita da violência desses dias no Oriente Médio é explicada a partir da disputa de poder entre duas potências regionais, Irã e Arábia Saudita.
Não há mocinhos. Tratam-se de duas ditaduras: o Irã governado pela teocracia dos aiatolás que conquistaram o poder em 1979; e a Arábia Saudita sob administração do clã Saud, uma monarquia absolutista desde os anos 1920. O aspecto religioso é importante: ambos são islâmicos. O Irã tem maioria xiita; a Arábia Saudita, sunita. Mas, embora cada governo tente instrumentalizar o cisma religioso, por vezes revivendo a disputa de sucessão, sobre quem, de fato, seria o verdadeiro herdeiro de Maomé, o ponto principal é político.
Irã e Arábia Saudita, que têm mais de meio século de disputas pautadas pela Guerra Fria, duelam para ocupar o vácuo de poder aberto a partir da queda de Saddam Hussein em 2003. O Iraque funcionava como contrapeso da força exercida pelo Irã (tanto que os dois países travaram uma sangrenta guerra nos anos 1980). Com a deposição de Saddam, os aiatolás acreditaram que teriam campo livre para exercer sua política externa agressiva de usar grupos terroristas para fazer o serviço sujo: o Hezbollah no Líbano, os houthis no Iêmen e o Hamas na Faixa de Gaza. A sucessão de quedas de ditadores a partir da Primavera Árabe só abriu ainda mais esse espaço. Aliás, na Síria, o ditador Bashar al-Assad só não caiu como os tiranos de Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen porque o Irã apoiou combatentes para mantê-lo no poder.
Na base do "inimigo do meu inimigo é meu amigo", os Estados Unidos apoiam a Arábia Saudita nessa guerra por hegemonia - assim como, lá atrás, apoiaram Saddam contra o Irã. Nos últimos anos, a família Saud tem apostado no "soft power" para se aproximar ainda mais do Ocidente, com a diplomacia do futebol e por meio de reformas de verniz liberalizante. Não há, de fato, mudanças profundas. Basta lembrar que o príncipe herdeiro Mohamed bin Salman é suspeito de ter ordenado a morte do jornalista Jamal Khashoggi, do The Washington Post, assassinado no consulado saudita na Turquia, em 2018.
Nessa disputa por poder, a possível ideia de um Irã nuclear causa arrepios na Arábia Saudita. Daí porque a monarquia estava com um pé dentro dos Acordos de Abrahão, que propõem a normalização das relações diplomáticas com Israel - Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão já haviam assinado. Esses acertos isolam o Irã. Daí também o interesse dos aiatolás de dinamitar, com os atentados terroristas do Hamas contra Israel em 7 de outubro, qualquer tentativa de estabilidade.