O retorno de Juan Guaidó à Venezuela sem ser preso pelo regime de Nicolás Maduro foi fruto de um plano secreto orquestrado pela oposição, com apoio de países aliados. Uma das medidas adotadas foi informar os passageiros do avião, no curto trecho entre a Cidade do Panamá e Caracas, de que o presidente estava a bordo só depois da decolagem.
— Estávamos preparados para o pior — conta a embaixadora de Guaidó no Brasil, a advogada e professora María Teresa Belandria.
Desde o dia 5 de fevereiro, ela é a representante de Guaidó em Brasília, onde transformou o quarto do hotel em gabinete de uma embaixada improvisada — a sede diplomática do regime Maduro, não reconhecido pelo governo brasileiro, segue operando, na Avenida das Nações, quadra 803, na capital federal.
Especialista em direito econômico internacional, María Teresa é professora da Universidade Central da Venezuela e coordenadora do partido de oposição Vente Venezuela, da líder oposicionista María Corina Machado.
No início de nossa entrevista, na terça-feira de Carnaval (5), ela fez questão de pedir desculpas, em nome dos "venezuelanos de bem" pela minha retenção, em 25 de janeiro, em Caracas, enquanto cobria uma manifestação pró-Maduro na frente do Palácio de Miraflores.
— Tu passaste em duas horas o que nossos jornalistas têm sofrido por 20 anos. Te peço perdão em nome dos venezuelanos de bem. Isso lamentavelmente tem de ocorrer a pessoas como você, que vive em um país livre, que pode tirar fotos em frente ao Palácio do Planalto e não lhe acontece nada. E para que as pessoas se deem conta de que nós vivemos, há 20 anos, sem liberdades. Para que se deem conta de que não se pode continuar chamando de presidente a um ditador absoluto, um ditador que não tem nenhuma diferença com Coreia do Norte com nenhum outro país. É muito grave, lamento muito lhe peço desculpas pelo que te fizeram.
A senhora acredita que a percepção mudou depois que Guaidó do dia 23 de janeiro. O mundo se deu conta de que a Venezuela vive uma ditadura?
Há 20 anos tentamos que as pessoas acreditem em nós. Vim a esse país (Brasil) em 2014 e em 2016, e dizia: "Há uma ditadura cruel, que assassina, mata, tortura, censura e reprime. Nos olhavam e diziam: "Bem, não". Hoje, quando acontece às pessoas o que ocorreu contigo, se dão conta de que nós sofremos. Dizem: "É verdade".
Quais são os próximos passos de Guaidó para chegar ao poder?
O presidente Guaidó tem o Plano País, que é um projeto para reconstruir o país. A Venezuela é como se tivesse passado por uma guerra, está absolutamente arruinada, não há nada que funcione. A primeira parte é a nomeação de pessoas-chaves nos organismos multilaterais. Um exemplo é a designação de Ricardo Hausmann como representante venezuelano no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). É uma nomeação extraordinária porque Hausmann foi economista-chefe do BID e é um dos economistas mais reconhecidos de Harvard. É extraordinário para a próxima fase, de reconstrução econômica. Passa por ele seguir avançando no estatuto da transição e assumir as rédeas da transição ao presidente. Há um plano público, que é o Plano País, e um plano que não é público, que são as fases que seguimos desenvolvendo: cessamento da usurpação, governo de transição e convocação de eleições livres. Estamos entre que se produza finalmente o cessamento da usurpação para que se forme um governo de transição e ele (Guaidó) possa nomear um gabinete completo, com todos os ministros. Isso todavia não pode ocorrer ainda porque é necessário esperar que se decida a situação de Maduro e das máfias que o acompanham.
Mas essa é a parte mais difícil.
É a parte mais difícil. Muita gente pensava que (a queda de Maduro) seria em uma prazo muito curto. Nunca vi como prazo curto. Romper uma tirania de 20 anos não ocorre em um mês, sobretudo com um sistema que segue tendo dinheiro para financiar suas atividades, que segue imprimindo papel-moeda sem respaldo, que está explorando ouro e o contrabandeando. O próprio governo está fazendo contrabando de ouro, o tirando pelas vias mais improváveis porque, legalmente, não pode fazer transações. Então, retiram (do país) por meio de aviões privados, de barcos, pela África para obter algo de efetivo. Creio que o cerco financeiro sobre o regime está avançando. E isso é importante porque eles não têm acesso às contas públicas que permitiam obter dinheiro diário, como as contas de PDVSA. A maioria dos ministros estão sob sanções, então não têm possibilidade de mobilizar contas públicas. Não têm acesso a recursos, a linhas de crédito. Utilizaram todo o fundo de reserva do Fundo Monetário Internacional (FMI). Já não podem pedir dinheiro ao FMI porque seria necessário autorizar crédito e não vão fazê-lo em virtude de não reconhecerem o regime de Maduro. O cerco econômico é muito importante. Some-se a isso a decisão do governo dos EUA de também começar a impor sanções a Cuba, como suporte principal do regime de Maduro. Vai levar um pouco mais de tempo do que as pessoas esperavam (para Maduro sair do poder), mas é um processo que não se pode deter e irreversível.
A entrada de Guaidó pelo aeroporto, sem que fosse preso, desacreditou o regime Maduro?
Creio que havia ordem para detê-lo, e alguém decidiu não acatá-la. Tinham o ameaçado. Duas semanas antes, quando estava estava aqui, no Brasil, a voz mais radical do regime, Diosdado Cabello (presidente da Assembleia Constituinte e número 2 do regime), dizia que lhe preparava um comitê de boas-vindas. E a atitude dos funcionários de migração... (deixando Guaidó entrar no país) Se tivessem ordem para detê-lo... Se quisessem prendê-lo, e a ordem tivesse sido essa, teriam o levado, não importa a quantidade de gente que o acompanhava. Já demostraram que isso não importa para eles. Creio que alguém não acatou a ordem.
Desde o Equador, Guaidó chegou ao Panamá, e lá se manteve totalmente em segredo sua presença. Nem sequer as pessoas no avião sabiam
MARÍA TERESA BELÁNDRIA
Diplomata
Não havia uma negociação nos bastidores para que não fosse preso?
Absolutamente, não. Para nada. A forma como entrou foi absolutamente secreta. Foi um plano secreto para que pudesse chegar sem ser advertido. Caso contrário, o avião não teria decolado. Desde o Equador, Guaidó chegou ao Panamá, e lá se manteve totalmente em segredo sua presença. Nem sequer as pessoas no avião sabiam que ele estava a bordo. Só ficaram sabendo quando o avião já estava em voo. Para que ninguém fosse infiltrado (por parte das forças de Maduro). O governo do Panamá fez um grande trabalho. Protegeu o presidente, uma coisa pela qual seremos sempre gratos.
A senhora ficou surpresa com o fato de ele não ter sido preso?
Todos tínhamos expectativas. Estávamos preparados para que fosse preso, para que não o deixassem entrar e para que entrasse. Tínhamos instruções sobre o que fazer em Caracas. Tínhamos de estar preparados, como embaixadores, frente aos cenários previsíveis. Estávamos todos preparados para o pior, apostando que ocorresse o melhor. Nos alegrou muito. O presidente representa, nesse momento, a esperança. O presidente Bolsonaro disse isso. Foi muito significativo quando ele disse isso. Eu o vi pela primeira vez quando estava em Davos (durante o Fórum Econômico Mundial, em janeiro). Quando fui falar com ele, Bolsonaro me disse: "Este jovem representa a esperança. Vocês representam o sonho dos venezuelanos".
Como foi esse encontro em Davos?
Foi a primeira vez em que despachei com o presidente e sua esposa. Foi uma visita muito agradável. Estava muito tranquilo, uma reunião cordial, muito amistosa, de muito entendimento. Gostei muito. Não havia visto o presidente Bolsonaro antes, apenas pela televisão.
O mais o Brasil e o governo Bolsonaro podem fazer mais por Guaidó, na sua opinião?
Primeiro, quero agradecer a tudo o que têm feito até agora. Em primeiro lugar, abrir os braços e dizer ao governo do Brasil e aos brasileiros: "Obrigado". Desde minha chegada a esse país, em 9 de fevereiro, só tenho recebido demonstrações de afeto, apoio e solidariedade. De amizade, de cooperação. Imediatamente, quando fui recebida no Itamaraty, no dia 11 de fevereiro, tive uma reunião com o ministro da Saúde (Luiz Henrique Mandetta), que já nos disse qual seria o suporte em insumos médicos (para envio à Venezuela). O Ministério da Defesa colaborou com toda a logística para mobilizar a ajuda humanitária. A forma como se organizou a ajuda na Base Aérea de Boa Vista, o carinho de cada soldado que carregava um saco de leite ou um pacote de arroz... Eles se aproximavam e diziam: "Isso é por vocês. Isso é importante para nós. São palavras que não poderei nunca esquecer. Nunca! E a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) fez um enorme esforço de coordenação, um trabalho logístico gigantesco para poder levar a ajuda até Boa Vista, com a Polícia Rodoviária Federal protegendo o carregamento. São tantas as pessoas a que temos de agradecer que quero começar por aí, dizendo obrigado. Em segundo lugar, o governo do Brasil tem exercido um papel determinante no Grupo de Lima, do qual participaram o vice-presidente Hamilton Mourão e o chanceler Ernesto Araújo, em Bogotá. O Brasil tem um papel muito importante com a liderança do presidente Bolsonaro, creio que seguirá sendo determinante.
A ajuda humanitária segue em Boa Vista?
Sim. Segue a parte mais importante, 150 toneladas, na Base Aérea de Boa Vista. Outras 30 toneladas que conseguimos trasladar até Pacaraima estão sob proteção do Exército do Brasil. Agora vem uma segunda fase. Estamos esperando instruções do presidente Guaidó para fazer uma nova tentativa de levar a ajuda humanitária. Temos toda a colaboração das autoridades brasileiras. Uma vez que se decida a forma, começaremos outra vez o processo logístico para vermos se, dessa vez, teremos mais sorte de trasladar a ajuda. Foi muito difícil, para nós, conseguirmos caminhões venezuelanos (para cruzar a fronteira), porque (as autoridades de Maduro) ameaçaram os motoristas de morte, de sequestro, de retirar suas placas e suas licenças internacionais.
O custo menor era deixar entrar a ajuda humanitária. Permitir que os insumos médicos que estavam aqui aliviassem a sorte de feridos
MARÍA TERESA BELANDRIA
Diplomata
Foi uma decepção o dia 23 de fevereiro porque vocês não conseguiram entrar com a ajuda?
Não foi uma decepção. Um regime sensato, que não é o de Maduro, sabendo das necessidades que têm as pessoas... O custo menor era deixar entrar a ajuda humanitária. O custo menor era permitir que os insumos médicos que estavam aqui aliviassem a sorte de feridos que estavam no Estado de Bolívar. Era aceitar que há uma crise e colocar a mão no coração e ajudar as pessoas. Mas demonstraram que não lhes importa se as pessoas morrem. Preferem impedir que a ajuda entre. E isso é um regime criminoso. Queremos ajudar, e quem nos impede é o regime de Maduro.
Surpreende que Guaidó aparece em praças e comícios na Venezuela sem um rigoroso sistema de segurança aparente. Recentemente, membros da Guarda Nacional foram a sua casa, quando apenas sua filha de quatro meses estava na residência. Como é a segurança de Guaidó?
Ele tem convicção do que está fazendo. Tem valor para aceitar que o destino do nosso país está em suas mãos. E tem coragem. São três coisas: convicção, valor e coragem. As pessoas cuidam dele. Isso que aconteceu em sua casa, quando chegaram as forças armadas, quem se mobilizou para impedir que entrassem foram os vizinhos. Vizinhos desarmados, senhoras com bebês no colo. Quando se dão conta de que o presidente representa a esperança é porque é assim. Trabalhei com uma líder política na Venezuela, Maria Corina Machado (líder da oposição). Ela jamais usou qualquer tipo de proteção, colete à prova de balas, capacetes, nada.
Guaidó usa colete à prova de balas em suas aparições públicas?
Não, para nada. Não usa nada disso. Eu o conheço, sei como ele pensa. Ele diz: "Se peço às pessoas que arrisquem sua vida, tenho de arriscar a minha".
Como tem sido o contato com o chanceler Ernesto Araújo?
Excelente. É uma relação próxima, pessoal, profissional, mas também de muita solidariedade. Tive a sorte de conhecê-lo. A Assembleia Nacional e o presidente Guaidó me nomearam (como embaixadora) em 5 de fevereiro. Estava em Washington, e o chanceler Araújo estava em visita à cidade. Apenas valeu minha nomeação pela Assembleia Nacional para que uma pessoa de sua equipe entrasse em contato comigo. No dia seguinte, 6 de fevereiro, eu estava me reunindo com ele na residência do embaixador do Brasil em Washington. Ali, me recebeu com toda sua equipe e me disse: "Tu estás aceita. Te reconhecemos como a representante do presidente Guaidó, e te espero em Brasília". Essas foram suas palavras.
Como é o seu trabalho? Não há embaixada, então, acredito que deva ser difícil.
Não, a embaixada funciona no meu quarto de hotel. E ali fazemos todo o trabalho que você tem visto nas últimas três semanas. Com um grupo de voluntários venezuelanos residentes em Brasílias que dedica todo o seu tempo. Deixaram suas famílias para nos ajudar, para que a embaixada funcione. Não necessitamos de um edifício para fazer nosso trabalho.
A senhora tem contato com a embaixada de Venezuela, o prédio que representa o regime Maduro em Brasília?
Não, primeiro porque eles, se tivessem vergonha, deveriam ter ido embora. Porque ninguém os reconhece. Em segundo lugar porque não me cabe perturbar a relação política que todavia possa existir entre o governo do Brasil e o regime de Maduro no sentido de que o país tem interesses na Venezuela e tem cidadãos brasileiros aos quais deve proteger lá. Como sabes, a diplomacia funciona por reciprocidade. O Brasil tem soberanamente o direito de manter esse estado de coisas até que considere oportuno. Não sinto falta nem do edifício nem de documento, porque acredito que estou fazendo meu trabalho, reconhecida pelo governo do Brasil em todas as reuniões. Se buscares na página do Itamaraty na internet, verás embaixada da Venezuela e irás constatar que meu nome aparece ali como embaixadora da Venezuela.