Em tom de desabafo, o embaixador Paulo Roberto de Almeida, exonerado do cargo de presidente do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) na segunda-feira (4), por críticas ao chanceler Ernesto Araújo, afirmou à coluna estar se sentindo livre. O afastamento ocorreu depois que Almeida reproduziu, em seu blog pessoal, três textos recentes, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do embaixador Rubens Ricupero e do atual ministro das Relações Exteriores, sobre a crise na Venezuela. Em seu artigo, Araújo critica as posições dos antecessores, afirmando que os dois “escreviam seus artigos espezinhando aquilo que não conhecem”.
Antes, o embaixador agora demitido havia feito críticas ao escritor Olavo de Carvalho, responsável por apresentar Araújo ao presidente Jair Bolsonaro. Almeida acredita que este foi o real motivo de seu afastamento.
Na entrevista a seguir, Almeida faz duras críticas ao atual assessor especial da Presidência, Filipe Martins, chamando-o de "Robespirralho", em referência a Robespierre, líder dos jacobinos durante a Revolução Francesa, quando foi implantado um regime de terror no país. Ele também considera Araújo "um embaixador júnior", que promoveu uma nova geração a postos de comando por ter dificuldade em dialogar com embaixadores mais antigos "e provavelmente mais sapientes do que ele".
Pelos colegas, o afastamento é visto como um ato de repressão político-ideológica do governo Bolsonaro.
Diplomata desde 1977, Almeida serviu nas embaixadas de Paris e de Washington, entre outros postos de destaque. Em 1984, concluiu doutorado em Ciência Política pela Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica. Ele havia assumido a direção do instituto em 2016 durante o governo Michel Temer. Mesmo exonerado do comando do Ipri, Almeida seguirá no Itamaraty porque é diplomata de carreira.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como o senhor está depois da exoneração do cargo?
Estou me sentindo livre porque, desde novembro do ano passado, quando foi anunciado o novo chanceler, sabia que meu tempo no Ipri (Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais) estava contado. Trata-se de um embaixador júnior (Ernesto Araújo), que anunciou várias coisas bizarras do ponto de vista da diplomacia. O que se viu pelo blog dele (antes de ser nomeado chanceler) e por declarações que deu, Araújo seria algo estranho para a diplomacia brasileira e para a administração, inclusive pelo fato de ser um embaixador júnior. Toda mudança de governo suscita substituição de pessoal. É normal que os novos dirigentes escolham seus assessores. É normal que eu fosse substituído. Só não sabia que seria dessa forma. Eu sabia que haveria substituição, tanto que foi anunciado um chefe mais jovem do que eu. Não um embaixador, mas um ministro de segunda classe, aliás um rapaz que foi meu secretário em Washington. Em dezembro, todos os embaixadores que eram subsecretários, com dois ou três postos no Exterior, foram comunicados de que estavam em disponibilidade. Todos foram substituídos por secretários jovens. Essa é a postura do Itamaraty, uma ruptura de hierarquia, como os militares dizem, coronel mandando em general. Mas (uma atitude) que combina com a postura do chanceler devido a sua insegurança em dialogar com embaixadores mais experientes, mais antigos, provavelmente mais sapientes do que ele em diferentes temas.
O senhor se considera vítima de censura?
Desde janeiro, fui proibido de trabalhar. Saí de Brasília logo depois do Natal, fui para o Rio Grande do Sul (sua esposa, Carmen Licia Palazzo, é gaúcha), fiquei aí até o começo do ano. Voltei a Brasília no dia 14. Quando retornei, fui instruído a não fazer nada até que tivesse um novo presidente da Funag (Fundação Alexandre de Gusmão, instituição ligada ao Ministério das Relações Exteriores), até que tivesse aprovado meu programa pelo chanceler. É inédito ser instruído a não fazer nada, a não trabalhar. Não esperava uma defenestração como ocorreu ontem (segunda-feira) pela manhã. Eles usaram o argumento da publicação no meu blog pessoal de três artigos (de Fernando Henrique Cardoso, de Rubens Ricupero e de Araújo).
Chamei Olavo (de Carvalho) de sofista da Virgínia. E gozei dele em várias postagens, porque ele é um ignorante em política internacional.
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
Diplomata
O senhor sentiu que aquela publicação seria a gota d'água?
Estava propondo um debate, como sempre fiz. Sempre publiquei coisas sobre política externa em meus blogs e nas minhas redes sociais. Sempre debati com as pessoas, sempre escrevi. Aquilo não foi o gatilho da demissão. O gatilho está em comentários anteriores que fiz sobre Olavo de Carvalho, que é o santo protetor de Ernesto Araújo. Chamei Olavo de sofista da Virgínia. E gozei dele em várias postagens, porque ele é um ignorante em política internacional, em economia. Na última postagem, gozei de uma declaração que fez, dizendo que os anos de maior comércio com a China também corresponderam aos de maior decadência moral, política e social no Brasil. Algo tão estapafúrdio que não pude me conter ao dizer que aquilo era uma idiotice total. E, claro, (critiquei) Eduardo Bolsonaro, quando ele falou contra a ida de Lula no velório do neto. Fiz uma postagem pequena dizendo que fundamentalistas não só se parecem como são semelhantes. Achei horrível.
Chama atenção que o senhor ficou quase 14 anos na geladeira do Itamaraty, durante o governo do PT. E agora é exonerado pela direita. O senhor se sente perseguido?
Os extremismos e fundamentalismos se parecem. Eles não suportam contestação, controvérsia. James Bond, que todo mundo conhece porque tinha permissão especial da rainha para matar. Eu me auto atribuí permissão especial para dissentir, para divergir. Sempre escrevi e por isso sempre fui punido. Inclusive antes do lulopetismo eu já havia sido punido pelo regime tucanês por escrever sem autorização. O próprio Seixas Corrêa (Luiz Felipe de Seixas Correa, embaixador) me puniu três vezes, por eu escrever e publicar sem autorização. Me puniu indevidamente porque você, como diplomata, não pode escrever sobre temas de política externa da agenda corrente sem autorização superior. O que eu concordo. Mas eu escrevia sobre política internacional de forma geral. Ele tinha feito uma lei da mordaça que serviu para defenestrar o Samuel Pinheiro Guimarães da minha mesma posição. Ele era diretor do Ipri em 2001 e foi defenestrado pelo Seixas Corrêa. Passei 13 anos e meio fora de qualquer cargo, só fui chamado depois do impeachment de Dilma, em agosto de 2016.
O filho do presidente e deputado federal Eduardo Bolsonaro é uma espécie de chanceler paralelo?
Sem dúvida. Já tinha o Marco Aurélio Garcia (assessor especial da Presidência) no regime lulopetista. Mas é muito diferente. Não dá para compará-lo com o Filipe Martins (que ocupa o cargo no governo Bolsonaro), chamado de "Robespirralho" (referência a Robespierre, líder dos jacobinos durante a Revolução Francesa, quando foi implantado um regime de terror) porque não tem estatura. Marco Aurélio Garcia era um agente cubano, homem de confiança dos cubanos para o Fórum de São Paulo e outras coisas da política externa para a América do Sul, tanto que era chamado de chanceler para a América do Sul. Ele tinha certa autoridade sobre o Itamaraty. Felipe Martins é só um colega de conversas de Ernesto Araújo. Ernesto Araújo não tem nada desse olavismo desenfreado. Nunca foi. Ele usou isso para ascender, isso é construído, é deliberado. Ele farejou essa coisa e investiu nessa vertente.
O senhor quer dizer que ele usou Olavo de Carvalho como trampolim para chegar ao cargo?
Exatamente. Ele estava em Washington quando estava lá Nestor Forster Júnior (diplomata na capital americana), um grande amigo meu, bom funcionário, mas um olavista fanático. Ele foi o cara que o levou Araújo a Olavo de Carvalho, em maio do ano passado, na Virgínia (estado americano onde Olavo mora).
Bolsonaro e Ernesto Araújo prometem desideologizar o Itamaraty, mas aparentemente há muita ideologia na atual política externa brasileira.
É até irônico falarem essas coisas. Não tem nada de mais ideológico do que falar contra globalismo, climatismo, marxismo cultural, politicamente correto, ideologia de gênero. Eles não se dão conta de que são ridículos. É absolutamente ridículo de falar política externa e comércio sem ideologia, quando o que mais fazem é reclamar da China.
Não tem nada de mais ideológico do que falar contra globalismo, climatismo, marxismo cultural, politicamente correto, ideologia de gênero.
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
Diplomata
E Araújo, o senhor tem o criticado duramente, chamando-o de "júnior". As relações entre vocês inexistem?
Elas são totalmente inexistentes. Eu o conheci nos anos 1990, quando ele trabalhava sobre Mercosul e até assinou um livro sobre o tema com o embaixador Sérgio Florêncio (embaixador), que eu resenhei, achei muito bom livro (a obra chama-se Mercosul hoje). Depois, nunca mais havia encontrado com ele. Em novembro de 2016, quando comecei a convidar pessoas para palestras no Ipri, chamei um amigo meu, professor da Academia Diplomática Americana, para falar sobre as implicações do governo Donald Trump para o Brasil e a América Latina. Tinha chamado Ernesto Araújo, que então era ministro-chefe do Departamento da América do Norte para ele comentar e introduzir o debate. Ele sacou do bolso um monte de folhas e começou a ler aquela coisa que depois se converteu no artigo dele: Trump e o Ocidente. Fiquei agastado porque não o chamei para proclamar que Trump iria salvar o Ocidente, mas não podia interrompê-lo na frente de todo mundo. Ele falou 20 minutos. Nem prestei atenção no que tinha falado. Fiquei entregue a minhas coisas. Teve uma pergunta de um professor da audiência, Eduardo Viola, que fez uma pergunta: "Ernesto, o senhor acredita realmente que o Facebook e o Google fazem parte dessa conspiração globalista contra a soberania dos países?". Ele simplesmente disse: "Sim, acredito." Fiquei surpreendido. Só em março ou abril de 2017 é que ele (Araújo) apresentou esse artigo para a revista Cadernos de Política Exterior. Em novembro de 2018, soube que, depois que a revista fora impressa, ele foi levá-la para Olavo de Carvalho na Virgínia. Ele começou a construir a coisa desde 2016.
O senhor foi exonerado por meio de uma ligação do chefe de gabinete do ministro de Estado, Pedro Gustavo Ventura Wollny. Foi dito que o senhor estava saindo do cargo devido às publicações dos artigos em seu blog?
Ele achou que eu tinha sido descortês com o ministro não só em relação a esses artigos, mas a outras postagens que fiz. Sempre coloco o que acho interessante. Todos os artigos que coloco estão no clipping do Itamaraty. A alegação é de que fui descortês com a chefia da Casa. A versão verdadeira é de que provavelmente ofendi Eduardo Bolsonaro e Olavo de Carvalho, os dois sustentáculos de Ernesto.
Tecnicamente, o senhor pode ser exonerado. O que vai fazer agora?
Fui colocado lá por decisão do governo Temer, do ministro José Serra (ex-chanceler), do Rubens Ricupero, do Rubens Barbosa (embaixadores). Estava nos corredores por anos. Me resgataram, fui promovido. Eu poderia ser exonerado a qualquer momento. Muda o governo, todos os embaixadores podem ser substituídos. Agora, vou fazer o que sempre fiz. Vou para a biblioteca (do Itamaraty), sento, leio, penso e escrevo. Eles não vão me oferecer nada no Itamaraty e nada lá fora. Ou eu arrumo um trabalho fora do Itamaraty ou fico sem função, o que até é uma irregularidade administrativa. Você não pode ficar recebendo sem trabalhar. Mas fiquei. Durante todo o lulopetismo, fui todas as vezes ao chefe da administração dizer: "Olha, estou aqui para trabalhar, por favor, me deem uma função". Eles respondiam: "Ah, sim, vamos tratar". Nunca fizeram nada.
Ficaram enrolando?
Até um chefe da área falou: Você é uma pessoa muito valiosa, mas, se o chanceler não gosta de você, fica difícil eu lhe colocar na minha área".
Como o senhor resume o que está acontecendo no Itamaraty em termos de política externa brasileira?
Não temos política externa. Alguns questionam a minha opinião sobre política externa, eu pergunto: "Qual?" Não há nenhuma exposição sobre política externa. Há um conjunto de pronunciamentos que vão sendo revertidos por "volta atrás!" do próprio presidente ou por tutela dos militares. Tudo o que Ernesto Araújo falou de mais controverso foi claramente cerceado, revertido pelos militares: base americana, Jerusalém, China, Acordo de Paris. Não está acontecendo nada de política externa porque não há. Existem eflúvios bolsonaristas e olavistas que orientam algumas ações do chanceler Ernesto Araújo sob estreita e estrita vigilância do comitê de tutela militar.