Em cinco dos 22 ministérios de Jair Bolsonaro, a crítica ao globalismo converteu-se em discursos ou medidas práticas nos primeiros dias de governo: Relações Exteriores, Educação, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Agricultura e Meio Ambiente. Os três primeiros integram o que especialistas consideram o núcleo ideológico no desenho do Planalto, composto ainda por um grupo liberal-técnico, do superministro Paulo Guedes, e outro judicial-militar, de Sergio Moro e dos generais próximos ao presidente.
A cruzada do novo governo contra o globalismo ficou expressa no pronunciamento de posse do chanceler Ernesto Araújo, segundo o qual o país precisa rejeitar o “marxismo cultural”, tendências emanadas, segundo ele, “dentro do próprio Itamaraty, impregnado na ideologia de foros diplomáticos internacionais e corruptora da soberania nacional e do patriotismo”. Para tanto, defende, devem-se recusar as resoluções de entidades multilaterais e juntar-se a regimes fortes, colados aos cânones ocidentais e à tradição judaico-cristã. Essa visão explica o “desconvite” do Itamaraty a Nicolás Maduro e Daniel Ortega à posse de Bolsonaro e o discurso de isolamento adotado contra o venezuelano.
Em seu artigo Trump e o Ocidente, que serviu como carta de recomendação de Olavo de Carvalho a Bolsonaro, carimbando Araújo no ministério, o diplomata recomenda a leitura de René Guénon, “importante influência de Steve Bannon”, que acreditava que “só o cristianismo, e especificamente o catolicismo”, poderia salvar o Ocidente.
Ao longo de sua história diplomática, o Brasil tem defendido o multilateralismo como princípio ordenador do funcionamento do sistema internacional – tradição que remonta à participação na Liga das Nações, no começo do século 20 –, mesmo em governos militares.
Com 20 anos de pesquisas sobre política externa e ex-professor de muitos dos diplomatas que hoje ocupam carreira em Brasília e no Exterior, o professor André Reis da Silva, do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS, vê a nova ordem como ponto de mudança na tradição brasileira de se filiar aos fóruns internacionais.
– A gente não pode chamar de inflexão. É uma ruptura, uma mudança drástica, uma reorientação da política externa brasileira que não se via há muitas décadas – avalia.
Ao considerar entidades internacionais como templos do globalismo, a nova política externa se propõe a alianças com governos conservadores, em especial Estados Unidos, Israel, Hungria, Polônia e Itália. Uma primeira amostra dessa nova posição do governo brasileiro no cenário internacional é a retirada do Acordo Global de Migrações, aprovado por 152 votos (entre eles do Brasil) em dezembro na ONU. A provável mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, alinhando o Brasil a Israel e aos EUA e comprando briga com os árabes, é outra medida de ruptura com a comunidade internacional, que defende a solução de dois Estados para as crises no Oriente Médio.
Outra forma de reduzir a presença brasileira nos fóruns internacionais deve ser o rebaixamento dos status de delegações e fechamento de sedes diplomáticas na África e na Ásia – durante o governo Lula houve grande ampliação de postos. Na última terça-feira, por exemplo, o governo dos Estados Unidos rebaixou o status da delegação diplomática da União Europeia (UE) nos EUA do nível de Estado para o de organização internacional.
Simpático à política de relações bilaterais no comércio exterior, Rodrigo Constantino considera, no entanto, que deve haver cuidado ao tratar da China, principal parceiro comercial brasileiro:
– O buraco aí é mais embaixo. Você tem de tatear, ter cuidado com a retórica, porque, no final do dia, defender interesses nacionais é olhar para a pauta de exportações.
No Meio Ambiente, o Brasil deve seguir os passos dos EUA e sair do Acordo de Paris, que impõe metas globais para a redução de gases que provocam o efeito estufa. O governo pretende, segundo interlocutores do Planalto, esvaziar as conferências do clima, outro local impregnado pelo globalismo, na visão de seus articuladores. Muitos consideram que o aquecimento global é uma invenção de cientistas, ONGs e Nações Unidas. Vice-presidente do Comitê Científico Internacional de Pesquisa Antártica, o professor Jefferson Simões, da UFRGS, acostumado a fóruns multilaterais de pesquisa do clima, critica a posição:
– Há gente das mais diferentes culturas, nunca perpassa a questão ideológica. Mas estamos num momento maluco. Tem quem bote na internet que o Papa é comunista.
Para os críticos do globalismo, o discurso de ONGs como Greenpeace e WWF está permeado pela ideologia marxista. Nesse sentido, regulamentos sobre o uso de agrotóxicos, como o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), proposto pelo governo Dilma Rousseff, por exemplo, são considerados excessivos. Para dar “mais lugar ao agronegócio”, o novo presidente transferiu a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas e o licenciamento ambiental de empreendimentos que podem afetar áreas indígenas do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, comandado pela ministra Tereza Cristina Dias.
Na Educação, uma das ideias é rejeitar a “agenda pedagoga” de entidades como a Unesco.
A suposta aplicação da filosofia do educador Paulo Freire nas escolas públicas é alvo de críticas de Bolsonaro, para quem seus ensinamentos “marxistas” atrapalham o desenvolvimento dos alunos. Na campanha, o hoje empossado presidente chegou a afirmar que, se eleito, iria “entrar com um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro”.
O primeiro ato do ministro Ricardo Vélez Rodríguez na Educação foi desmontar uma secretaria do MEC responsável por ações de diversidade, como direitos humanos e relações étnico-raciais. Na quarta-feira, após repercussão negativa nas redes sociais, o ministro decidiu anular mudanças realizadas no edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2020, que regulamenta a produção do conteúdo dos livros didáticos no país. O edital anulado acabava com a necessidade de citação de origem do conteúdo (referências bibliográficas) e excluía orientações para que as obras tivessem compromisso educacional com a agenda da não violência com a mulher e a promoção da cultura quilombola e os povos do campo. Em nota explicando o recuo, o MEC reiterou o compromisso “com a educação de forma igualitária para toda a população brasileira”.
O diretor do Inep, responsável pela formulação do Enem e outros exames que aferem indicadores escolares, Murilo Resende Ferreira, também é seguidor de Olavo de Carvalho.