A se confirmar a saída do Brasil do Acordo Global sobre Migrações,anunciado nesta terça-feira pelo presidente Jair Bolsonaro em carta a diplomatas, segundo a rede BBC Brasil, este será o ato número 1 da nova política externa brasileira no caminho de abandonar os fóruns multilaterais — expressão concreta do chamado globalismo que o chanceler Ernesto Araújo costuma criticar.
No ocaso do governo Michel Temer e de seu ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, o governo brasileiro assinou o acordo, em 10 de dezembro, ao lado de outros 164 países. Nove dias depois, a Assembleia-geral da ONU aprovou os termos do pacto por maioria: 152 votos favoráveis (entre eles, o Brasil), 24 não se posicionaram, 12 se abstiveram e cinco foram contrários.
Ou seja, durou 20 dias o pacto para o Brasil. O país se juntará, agora, aos cinco contrários — Estados Unidos, Hungria, Israel, República Checa e Polônia, todos países governados por regimes conservadores.
O Planalto argumenta que o pacto viola a soberania nacional. Não é verdade. O tratado não tem caráter vinculativo. Ou seja, nenhum signatário é obrigado a cumpri-lo ou sofre sanções caso não o fala. Trata-se apenas de uma carta de princípios, como outros tipos de documentos do sistema das Nações Unidas. Não há obrigações formais.
Se não é vinculativo, qual a sua importância? Eu explico. O pacto sobre migrações tem entre os objetivos prever que o migrante que estiver irregular no país não seja deportado imediatamente. Cada caso será analisado individualmente. O princípio se baseia na doutrina do non-refoulement (não-devolução), amplamente reconhecido pelo Direito Internacional e previsto nas convenções de Genebra e relativas ao Estatuto dos Refugiados.
"Os Estados Contratantes não expulsarão um refugiado que se encontre regularmente no seu território senão por motivos de segurança nacional ou de ordem pública", diz o Estatuto do Refugiado, de 1951.
O pacto de agora dá maior proteção aos migrantes: acesso a Justiça, saúde, educação e informação, antes que seu caso individual seja julgado pelos órgãos nacionais. Também proíbe deportações coletivas e discriminação na análise sobre a permanência ou não do migrante no país. O tratado recomenda ainda que a prisão de migrantes seja o último recurso, e que, se necessária, a pessoa fique o menor tempo possível detida. Até o papa Francisco, recentemente, defendeu o pacto diante de fiéis na Praça de São Pedro.
— É preciso ter compaixão com os migrantes, que deixam seus países por razões diversas — disse o Pontífice.
O primeiro impacto de uma eventual saída brasileira do acordo será em relação aos venezuelanos que fogem do regime de Nicolás Maduro e que adentram no território nacional principalmente pelo Estado de Roraima. É mais uma forma de o governo Bolsonaro aumentar a pressão sobre Caracas.
Na prática, os migrantes ficarão mais vulneráveis em território brasileiro e poderão sofrer empecilhos para serem reconhecidos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) na categoria de pessoas que “deixam o seu país de origem devido a fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos”.
A maioria dos venezuelanos que entra no país apela à portaria interministerial 9/2018, sobre "autorização ao imigrante que esteja em território brasileiro e seja nacional de país fronteiriço onde não esteja em vigor acordo do Mercosul". Isso lhes dá garantias de permanecer em território brasileiro, mesmo não sendo enquadrados como refugiados e até que o Conare julgue o caso. Mas portarias, como se sabe, podem ser revogadas a qualquer momento pelo governo federal.
Não há punições no âmbito da ONU a quem não respeitar o pacto sobre migrações. Mas isso não significa que não haverá retaliações, como eventuais problemas para brasileiros migrantes em outros países. Como se sabe, somos muitos lá fora: cerca de 3 milhões, segundo o Itamaraty.