Um dos principais conhecedores dos meandros do Itamaraty, André Reis da Silva, professor de política externa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vê com preocupação os primeiros passos do novo governo nas relações exteriores.
O alinhamento automático com os Estados Unidos, promessa do presidente Jair Bolsonaro, é comparável, segundo o pesquisador, ao que o Brasil viveu no mandato do general Castelo Branco, em 1964. Em geral, períodos de parceria carnal com a Casa Branca, segundo ele, duram no máximo três anos. Logo, os estrategistas se dão conta de que a recíproca americana fica aquém das expectativas.
O discurso contra o que o governo chama de “globalismo” e a promessa de desideologização das relações exteriores prevê ainda aproximação com Israel, o afastamento do país de instituições multilaterais e o abandono de relações Sul-Sul, prioridades na era do PT na Presidência.
Pós-doutor em Relações Internacionais pela School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres, Reis foi professor de muitos dos diplomatas que hoje estão em Brasília ou em postos no Exterior. Nesta entrevista, ele comenta como a nomeação do gaúcho Ernesto Araújo para o cargo de chanceler significa uma quebra na hierarquizada estrutura do Itamaraty e prevê crises no horizontes.
Que avaliação o senhor faz dos primeiros passos do chanceler Ernesto Araújo e de política externa de Bolsonaro?
Ele (Araújo) está seguindo a agenda de campanha de Bolsonaro. Basicamente desmonta questões estruturais da inserção do Brasil, que não são de agora, não são do governo do PT ou do PSDB. A gente não pode chamar de inflexão, é uma ruptura, uma mudança drástica, uma reorientação da política externa brasileira que não se via há muitas décadas.
Como a escolha de Araújo para o cargo de ministro foi recebida dentro do Itamaraty?
Araújo é um diplomata de carreira, de 51 anos. Do ponto de vista da carreira diplomática, estaria indo para o status superior, mas ainda não é do grupo top. A carreira no Itamaraty é muito hierarquizada, semelhante a dos militares. Ele praticamente pulou 10 anos. Pela tradição diplomática, o presidente pode escolher alguém de fora (do Itamaraty) como chanceler, mas ao chamar alguém da Casa, é tradição pegar aqueles que são embaixadores há um bom tempo, que estão na faixa dos 60 anos, que tenham bastante experiência internacional em chefias de representações, ocupado cargos estratégicos e com certa ascendência intelectual sobre os colegas mais jovens. Araújo não tem nenhuma dessas qualidades. Não está em final de carreira, foi nomeado embaixador há pouco, não tem tempo de experiência no Exterior em chefias de embaixada e não tem ascendência intelectual como líder entre os colegas.
Que problemas essa quebra de hierarquia pode provocar?
Como é jovem e está provocando mudanças drásticas, está fazendo movimentações internas para promover o baixo clero. Isso provoca muita instabilidade. Nos próximos meses, vamos ter crises no Itamaraty: auto-demissões, remoções bruscas. Ele já chamou alguns diplomatas do Exterior para entregar o cargo. Aí, fica ali em Brasília, sem ter o que fazer, sem função. Isso é horrível para um funcionário de carreira de alto nível, com 30 anos de experiência. Dentro do Itamaraty, está tendo muito ruído. Eles estão acostumados a mudanças, trocas de cadeiras, oscilações políticas, mas o que está se anunciando é uma mexida muito maior. O Itamaraty é a clássica e típica burocracia estatal racional legal, bastante hierarquiza, estruturada, formada na tradição do mérito, dos concursos e da promoção interna. É quase o equivalente a pegar um sargento e nomeá-lo comandante de pelotão. Tu tens uma situação interna complexa do ponto de vista de frustração de expectativa.
A crítica ao chamado globalismo pode levar o país a isolamento em relação a seus tradicionais parceiros?
Qualquer política externa é baseada em condicionamentos internos e constrangimentos externos. Um governante não faz tudo o que quer. Faz impulsionado por interesses internos. Se vier com essa agenda isolacionista, a agenda internacional vai comer o Brasil. Daqui a pouco vai querer brigar com os chineses? Às vezes, o que é bom para os EUA não é bom para o Brasil. Uma coisa é os EUA entrarem em guerra comercial, eles têm muito mais peso e condições. O Brasil, não. Imagina entrarmos em guerra comercial com a China ou sair brigando com os russos, implicar com os africanos, meter a mão com os árabes. O tempo da política externa não é o tempo da política interna. você trabalha com com prazos mais dilatados. Às vezes, se constrói um projeto para ser aproveitado ou não por outro governo. O que tu fazes agora repercute daqui 10, 20 anos. Uma guerra ou um passo mal dado na América do Sul inviabiliza a integração por 20 ou 30 anos.
Como as referências religiosas do discurso de Araújo são vistas pelos diplomatas, acostumados a um Estado laico?
Do ponto de vista de inserção internacional do Brasil é complicado. Não há problema um ministro eventualmente, em discurso, agradecer a Deus. Mas é sempre constrangedor o representante de um governo de um Estado laico ter dimensões religiosas muito fortes. Os europeus passaram 300 anos se matando por causa de religião. Até que disseram que esse assunto é uma questão da esfera privada. E acalmou. A esfera pública é laica. As leis não podem obrigar ou constranger uma pessoa pela sua religião. A história do Brasil é parecida. Dom Pedro II, embora católico, tinha certa tolerância com os protestantes. Quando foi proclamada, a República afastou os símbolos religiosos. Agora, na eleição de 2018, a questão religiosa foi colocada na esfera pública de novo. Isso é extremamente perigoso. Estudo política externa há 20 anos, e nunca havia visto manifestações religiosas com essa intensidade.
O país sempre teve uma relação muito próxima com os EUA, mas nosso tamanho, gigantismo, interesses múltiplos e universais não permitem alinhamento automático nem com os EUA nem com China nem com nenhum outro.
ANDRÉ REIS DA SILVA
Professor de Política Externa da UFRGS
Marxismo cultural, globalismo. Essas expressões perpassam o núcleo ideológico do governo. Que papel o senhor acha que o Itamaraty terá neste mandato?
O discurso de Araújo revelou que ele conhece um pouco de grego, alguma coisa em latim, uma oração em tupi, mostrou alguma erudição da formação em Letras. O resto foi a reprodução do discurso de campanha desse núcleo ideológico. No governo Bolsonaro está muito claro um desenho de três partes: um núcleo liberal-judicial, integrado pelo Paulo Guedes (Economia) e pelo Sérgio Moro (Justiça), o núcleo militar em torno do vice-presidente e o terceiro, a turma ideológica, com Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), Ricardo Vélez Rodríguez (Educação) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores). Nesse grupo ideológico, entra de tudo, baseado muito na direita alternativa americana (alt-right).
Inspiração nas ideias de Steve Bannon, ex-braço direito de Donald Trump?
Exatamente. Está muito ligada à direita alternativa americana, que já vinha num crescente, com conexões com grupos da direita na Europa. São inspirados na ideia de antiglobalização e criaram esses conceitos estranhos do ponto de vista práticos e teóricos das relações internacionais. Globalismo é um conceito completamente esdrúxulo da forma como estão usando. O globalismo, quando a gente discutia o termo, nada mais era a forma como a globalização assumia aspectos institucionais e culturais. Ser contra o globalismo é como reclamar das condições do tempo. É estranho. Não faz sentido nem do ponto de vista nem teórico nem empírico. Mas isso é utilizado para criticar os fóruns multilaterais. Daí que vem todo o pensamento de Araújo.
O que o Brasil ganha e perde com alinhamento automático com os EUA?
Há expectativa de que traga retornos para o Brasil. O país sempre teve uma relação muito próxima com os EUA, mas nosso tamanho, gigantismo, interesses múltiplos e universais não permitem alinhamento automático nem com os EUA nem com China nem com nenhum outro. A tradição diplomática do Brasil não é de agora, não é de Lula ou de Fernando Henrique Cardoso. Remonta até a antes de Getúlio Vargas. Sempre foi trabalhar com as várias hegemonias, de olhar o cenário internacional e buscar espaços de manobra. A experiência histórica mostra que quanto mais se alinha a um país mais o Brasil perde. Qual a leitura que eles fazem? Temos de nos alinhar aos EUA, que são o líder do Ocidente, que está sendo ameaçado pelo Oriente, principalmente pela China e por uma ideia muito vaga de outras civilizações. Nada mais é do que a leitura meio já superada de Samuel P. Huntington e a teoria do choque de civilizações. Mas toda vez que Araújo diz “Nós, o Ocidente”, é bom lembrar que os EUA não nos consideram Ocidente. Pela a teoria de Huntington, somos latino-americanos, é outra civilização. Quando fala em Ocidente é EUA e Europa Ocidental. Do México para baixo, somos latino-americanos. Somos segunda linha. Também tem que ter muro contra nós. A ironia é querer uma aliança com aqueles que nem nos consideram núcleo da aliança. Todas as vezes em que o Brasil se alinhou incondicionalmente aos EUA durou dois a três anos e mudou porque o resultado foi magro e decepcionante. Os EUA nunca valorizaram o alinhamento automático do Brasil.
Esse alinhamento agora proposto é comparável a que outros momentos históricos?
Lembra muito o governo Castelo Branco tanto do ponto de vista da política interna quanto externa. Castelo Branco assumiu em um golpe, uma ruptura institucional, Bolsonaro foi eleito. Mas ambos com a promessa de acabar com o socialismo, imagem de Guerra Fria muito clara e de uma adesão aos interesses dos EUA. Isso aconteceu em 1964 e foi até 1967. Durou três anos e mudou, viram que o resultado era magro e os EUA não deram nada em troca. Perceberam que não estava de acordo com os interesses estratégicos brasileiros. Fizemos a mesma coisa: brigamos com os chineses, nos afastamos dos vizinhos, destruímos a política africana feita na época da política externa independente. É considerado um dos governos mais alinhados com os EUA na história.
O afastamento dos vizinhos é outra ruptura em relação à tradição da política externa brasileira?
Li em 1996 um livro muito bom chamado O Mercosul hoje, escrito por dois diplomatas Sérgio Florêncio e Ernesto Araújo (o atual chanceler). Nesse livro, Araújo fazia uma defesa ardorosa do Mercosul como espaço de inserção estratégico do Brasil. Curioso né? As ironias da História. Ele pode dizer: “Esqueçam o que escrevi”. Ou o Mercosul, de fato, envelheceu. Pode acontecer. A crítica ao Mercosul também é complicada porque afeta a nossa exportação de produtos industriais. O desenho todo que está montado de política externa é muito perigoso. Não é questão do Lula ou Dilma, Bolsonaro vai desmontando construções anteriores como a questão com os vizinhos. Questiona a tradição de não comprar briga com vizinhos. Na questão da Venezuela, o Brasil deveria entrar como mediador e não jogando um balde de gasolina.
Na época do governo Lula houve aumento exponencial do número de embaixadas brasileiras no Exterior. Haverá redução com Bolsonaro?
Sim, bem provável. Baseada em dois argumentos: o principal é a questão da economia, o enxugamento da máquina, porque custa caro manter uma representação. Ele pode fazer um cálculo mais simplista e questionar o que determinada embaixada traz de retorno no ponto de vista comercial. Mas nem sempre a embaixada está em um país por questão comercial. Às vezes é questão política, securitária ou porque há muitos imigrantes brasileiros, às vezes precisa ter um ponto de apoio. Eles podem fechar algumas embaixadas que não estão no plano estratégico, sobretudo as africanas, algumas na América Central e talvez pela Ásia Central. Por outro lado, podem pegar essas embaixadas pequenas e colocar ali alguns diplomatas para acomodar aqueles que não querem perto, os da velha ordem. Ou seja, usar essas embaixadas menores como uma espécie de exílio para diplomatas que estão sendo escanteados.