Você deve ter estranhado a presença de Evo Morales, um dos herdeiros do bolivarianismo de Hugo Chávez, na posse de Jair Bolsonaro. Ao lado do presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, o líder cocaleiro convertido em presidente em 2006 na Bolívia, era o único político de expressão da esquerda latino-americana na cerimônia. Evo e Bolsonaro têm divergências ideológicas homéricas, mas trocaram efusivos apertos de mãos ainda no plenário da Câmara e, depois, na hora reservada às congratulações das delegações do Exterior.
Na sequência, durante o coquetel no Itamaraty, chamou a atenção a conversa animada entre Evo e o chanceler Ernesto Araújo, em foto divulgada pelo Planalto no Twitter (reprodução acima).
Evo, que formou com Nicolás Maduro e Raúl Castro o eixo do bolivarianismo latino-americano, não foi excluído ou "desconvidado" da posse pelo Itamaraty, ao contrário do presidente venezuelano e do atual líder de Cuba, Miguel Díaz-Canel. Desde o início, ele foi bem-vindo. Nesta terça-feira, chamou Bolsonaro de "irmão" e destacou, pelo Twitter, que Brasil e Bolívia olham para o mesmo horizonte.
O que explica essa aproximação entre regimes antagônicos de Brasil e Bolívia e as portas abertas do novo Planalto a Evo, exceção à linha-dura com os demais vizinhos de esquerda?
São três as razões. A primeira: Evo não é mais o líder de massas, de discurso radical, que chegou ao poder em 2006 no auge da chamada onda rosa na América Latina, com regimes chamados progressistas. Pouco a pouco, ele foi se afastando de seu padrinho político Chávez. Aliás, sua relação com Chávez era mais carnal do que com Maduro. Há um distanciamento claro entre Bolívia e Venezuela. Evo não é mais um radical: moderou o discurso até para não acabar como os venezuelanos e seu país falido economicamente. A Bolívia, ao contrário, reduziu a pobreza extrema de 38% para 18%. Alinhar-se com Bolsonaro o afasta ainda mais de Venezuela e Cuba.
A segunda razão é interna. Evo enfrenta seu cenário mais difícil na busca pelo quarto mandato, em outubro. Seu projeto de reeleição indefinida foi rejeitado em referendo pela população em fevereiro do ano passado, com 51% dos votos. Mas Evo conseguiu junto à Justiça eleitoral sinal verde para concorrer. O país vive uma turbulência política intensa, com protestos e greves de fome. Seu principal rival é o ex-presidente Carlos Mesa, que aparece em primeiro nas pesquisas. Ligado a setores conservadores, o historiador e ex-jornalista de TV decidiu armar uma aliança improvável com partidos de centro e de esquerda para desbancar Evo. Ou seja, ao vir a Brasília, o atual presidente boliviano busca a simpatia e surfar na popularidade interna de Bolsonaro, que teria tudo para apoiar Mesa na eleição de outubro do ano que começa.
A terceira razão é econômica. A Bolívia tem um contrato de exportação de gás para a Petrobras nos anos 1990. Mas, com a produção no pré-sal, a dependência do produto importado diminuirá por aqui. A estatal brasileira pretende rever os termos do contrato de fornecimento, que vence no fim do ano. O acordo firmado com a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) prevê que a Petrobras pode importar até 30 milhões de metros cúbicos por dia. O volume deve ser reduzido pela metade. Evo no Brasil também busca, no mínimo, fazer lobby para que os brasileiros não sejam, assim, tão rigorosos ao rever as condições no novo acordo.
Os adeptos de teorias conspiratórias poderiam imaginar que o governo brasileiro poderia usar a influência de Evo junto aos regime venezuelano e à esquerda latino-americana para corroer o governo Maduro por dentro.