O jornalista Rodrigo Lopes, enviado especial do Grupo RBS a Caracas, foi retido e mantido sem comunicação com o exterior em uma unidade militar na frente do Palácio Miraflores na sexta-feira, 25 de janeiro. O repórter de 40 anos teve o celular e o passaporte apreendidos por forças do governo de Nicolás Maduro no Centro Estratégico de Seguridad y Protección de la Pátria. Ele foi liberado após duas horas de questionamentos. O documento e o celular foram devolvidos. Antes de deixar o prédio, teve sua foto registrada e foi ameaçado:
— Se te pegarmos novamente, tu vais ser preso e responderás processo segundo as leis venezuelanas.
Por questões de segurança, o repórter deixou a Venezuela e retornou ao Brasil. A seguir, Lopes relata o episódio.
A abordagem
Não precisava daquela foto. Havia viajado 20 horas entre Porto Alegre e Caracas, estava sem dormir havia 33 horas, tinha relatos de apoiadores de Nicolás Maduro e de Juan Guaidó. Começava a anoitecer, e já tinha enviado todo o material do primeiro dia de cobertura na Venezuela para a Redação, em Porto Alegre. Ir até a região do Palácio Miraflores me parecia importante. O prédio é o símbolo máximo do governo, desejado por Maduro, que se encastela lá, e pelo autoproclamado presidente Guaidó.
Cheguei pela Avenida Urdaneta a bordo de uma caminhonete, dirigida por um cidadão venezuelano cujo nome não estou revelando por questões de segurança. Descemos do carro para observar a área altamente militarizada. Não era aconselhado entrevistar nem fazer fotografias. Mas, ao avistar uma manifestação de apoiadores de Maduro, resolvi tirar o celular do bolso e registrar a imagem.
Havia feito o mesmo no início da tarde, no comício de Guaidó. Fiz três imagens rápidas e voltei a guardar o aparelho no bolso. Nesse momento, um homem vestindo camisa e calça jeans nos abordou e arrancou o celular das minhas mãos.
Ele foi passando as imagens até chegar às fotos e aos vídeos do comício de Guaidó, inimigo de Maduro.
— Militante da oposição! — gritou.
— Não sou militante. Sou jornalista brasileiro — expliquei.
Percebia que, aos poucos, estava entrando no mundo de teorias conspiratórias dos apoiadores de Maduro.
Sabia o risco de dizer aquilo desde que o governo de Jair Bolsonaro reconheceu Guaidó como presidente interino da Venezuela.
— Ah, brasileiro! — ele ironizou.
— Me acompanhe.
Caminhei a seu lado até chegar atrás da barreira militar. Meu motorista tentou seguir, mas foi barrado com a mão de um militar em seu peito. Fui levado a um superior, um rapaz de cabelo curto, vestindo terno e gravata. Vários homens me cercaram. De camisa social vermelha como uniforme, observavam com desdém e viravam as costas.
— O que estás fazendo na Venezuela? — perguntou o homem de terno e gravata.
— Vim mostrar o que está acontecendo em seu país.
— Vamos te prender para saberes o que é bom. A imprensa brasileira chama nosso presidente de ditador — ele disse.
"Vamos te meter no cárcere"
Percebia que, aos poucos, estava entrando no mundo de teorias conspiratórias dos apoiadores de Maduro. Na guerra, a primeira vítima é a verdade. Aprendi isso na prática, em coberturas em zonas de conflito que fiz por ZH ao longo dos últimos 22 anos: no Iraque, no Líbano e na Líbia, em países sob ditadura, como a Síria, ou sob ruptura institucional, como Honduras na crise de Manuel Zelaya na embaixada brasileira e no Paraguai, durante o impeachment de Fernando Lugo. Era fácil para quem me mantinha retido distorcer minhas palavras, me acusar de ser militante da oposição com as imagens do celular que tinham em mãos.
— Vamos te meter no cárcere — ameaçou o homem.
Pedi para falar com a embaixada do Brasil.
— Brasil? O seu presidente não reconhece nosso presidente — afirmou ele, rindo e ordenando que o acompanhasse até o interior do prédio militar.
Caminhonetes grandes deixavam os portões do quartel em alta velocidade com homens armados com fuzis muito novos. Não havia qualquer identificação a qual força pertenciam.
— Sente-se — ordenou o homem, apontando um banco de madeira.
Ele saiu da sala. Fiquei sozinho. Parecia uma repartição pública. Funcionários civis encerravam a jornada de trabalho, despediam-se dos colegas, aparentemente pessoas comuns indo para o final de semana. Eu me perguntava se elas sabiam o que estava acontecendo comigo. Deveria abordar alguma delas e pedir ajuda?
Um militar com a farda desgrenhada e boina vermelha se aproximou de mim. Levantei para apertar sua mão.
— Sente-se — ordenou. — Queres brigar? (pelear, na expressão em espanhol) — ele provocou, cerrando os punhos como se fosse lutar boxe.
— Fight? — insistiu outro, em inglês.
— Só levantei para cumprimentá-lo — expliquei, cabeça baixa, tentando mostrar que não representava ameaça.
— Passaporte! — mandou.
Entreguei. Ao observar o documento, com as palavras "Brasil" e "Mercosul" registrados na capa, ele deu uma risada.
— Mercosul, é? — ele disse, provavelmente desdenhando do fato de a Venezuela estar suspensa do bloco devido à cláusula democrática.
O fato de o governo brasileiro não reconhecer a presidência de Maduro tirava qualquer chance de mediação diante de uma eventual prisão.
O interrogatório
Teve início um interrogatório. De pé, ele questionava a linha editorial de Zero Hora, se era de direita ou de esquerda e sobre "que tipo de textos" escrevo. Na tentativa de criar alguma empatia, falei que havia estado na Venezuela em 2007, durante o Fórum Social Mundial, que Hugo Chávez já visitara Porto Alegre.
— Vamos revisar teus textos na internet. Tudo o que publica no jornal. Hora Zero, não é?
— Zero Hora — corrigi.
— Vamos revisar tudo — afirmou.
Agora, estava havia uma hora recluso, sem celular e sem passaporte em quartel da Venezuela. Fui obrigado a acompanhar outro militar. Diferentes pessoas falavam comigo em vários momentos na tentativa de me fazer cair em contradição. Fui sendo conduzido mais para o interior do quartel. Cinquenta passos aproximadamente entre prédios de concreto. Onde seria a prisão?, pensava.
Àquela altura, com meu celular com imagens de Guaidó e meu passaporte, eles poderiam me acusar de qualquer crime. O fato de o governo brasileiro não reconhecer a presidência de Maduro tirava qualquer chance de mediação diante de eventual prisão.
Entramos em outro prédio: um corredor longo com painéis com fotos de Hugo Chávez. Mandaram que eu voltasse a sentar. Havia outro homem em situação semelhante.
— Jornalista? — ele quis saber.
— Sim.
— Eu também. Sou espanhol. Está acontecendo com muitos. Eles estão retendo, apreendem equipamento e liberam.
Foi a primeira pessoa, em uma hora de retenção, a me tranquilizar. O homem de terno e gravata batia nas várias portas do corredor. Atrás de alguma delas, meu celular, fotos, vídeos e textos no site de ZH estavam sendo analisados. Tentei lembrar dos últimos registros, o que poderia ser entendido como um conteúdo contrário a Maduro?
Fichado e liberado
Após duas horas sem passaporte e celular, apareceu outro homem em trajes civis, com uma mochila:
— Aqui está seu celular e seu passaporte. Revise-os para ver que não tiramos nada.
Percebi que o celular vibrava. Havia combinado um boletim para a Rádio Gaúcha, provavelmente era a produção do programa telefonando. Não atendi.
O homem continuou:
— O senhor sabe onde está?
— Sim, em frente ao Palácio Miraflores.
– Correto. E o que é?
— Sede da presidência de Nicolás Maduro — respondi.
— Pois bem, imagine em seu país, o senhor poderia fotografar a sede da presidência?
Preferi o silêncio. Ele emendou:
— O senhor tem de entender que temos que zelar pela segurança de nosso presidente. Pode ir.
— Posso fazer uma única pergunta? — questionei.
Ele assentiu.
— Agora, posso ir ali fora e fotografar os apoiadores de Maduro para mostrar aos leitores brasileiros?
— Não. O senhor pode fazer fotografias em qualquer outro lugar, se houver manifestações de apoio a nosso presidente amanhã. De longe, tudo ok, desde que não distorça informações.
E continuou:
— Agora, o senhor está fichado conosco, conhecemos tua cara e sabemos onde escreves — disse.
— Se te pegarmos novamente, tu vais ser preso e responderá processo segundo as leis venezuelanas.
O homem, então, mandou que eu encostasse contra uma parede, tirou o celular do bolso e fotografou duas vezes o meu rosto com flash.
— Ok, vá — mandou.
Percorri o corredor, virei à direita e, na barreira militar, expliquei a uma soldado que estava liberado. Ela abriu o portão. Caminhei sem olhar para trás em direção ao motorista, que me esperava.
Triste por ter abortado a cobertura de um fato que mobiliza o mundo. Revoltado por ter meu direito ao exercício do jornalismo independente cerceado. Mas, acima de tudo, indignado, porque, em última análise, quem perde com a censura é a sociedade.
Ao chegar ao hotel, comuniquei meus editores em Zero Hora e a direção do Grupo RBS sobre o ocorrido. Em decisão conjunta, resolvemos que, por segurança, eu deixaria a Venezuela.
Não fui agredido fisicamente em nenhum momento entre as 17h46min e 19h47min, período em que fiquei retido sem comunicação com o exterior, sem passaporte e sem celular, no Centro Estratégico de Seguridad y Protección de la Pátria. Não apagaram as fotos e vídeos de meu aparelho – apenas as que eu próprio havia deletado no momento da abordagem, as cenas do Miraflores. Também não fui algemado.
Das 20h de sexta-feira (25), quando cheguei de volta ao hotel, até as 16h de sábado (26), permaneci em meu quarto. Fiquei recluso, agora por decisão acordada com o jornal. Ouvi sons de uma passeata de militantes — não sei de qual orientação — caminhando na frente do prédio. Observei pela janela apenas.
Como me sinto? Triste por ter abortado a cobertura de um fato que mobiliza o mundo. Revoltado por ter meu direito ao exercício do jornalismo independente cerceado. Mas, acima de tudo, indignado, porque, em última análise, quem perde com a censura é a sociedade. Foi o direito dos leitores de ZH de saberem o que está acontecendo na Venezuela que foi ceifado.
Esta história foi mantida sob sigilo, com conhecimento apenas de meus editores e da direção da RBS, até que desembarcasse, em segurança, em território brasileiro no domingo (27).