Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que se apresenta como representante da empresa Davati Medical Supply, levou a expressão "propina" à CPI da Covid, que acaba de convocá-lo para depor na sexta-feira (2/7).
Teria recebido a proposta ao fazer uma ainda mais esquisita a funcionários do Ministério da Saúde: a venda intermediada de 400 milhões de doses da AstraZeneca, às quais o governo federal já tem acesso por meio de convênio com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Embora os personagens sejam peculiares —, tanto Dominguetti quanto o deputado federal Luís Miranda (DEM-DF) —, começam a delinear um modus operandi coerente: a existência de uma via rápida, exclusiva para vacinas oferecidas por intermediários.
É o que têm em comum os casos da indiana Covaxin e o mais recente, que envolve a Davati como suposta revendedora de AstraZeneca. Apenas insinuada no primeiro caso, e explicitada no segundo, a propina volta a funcionar como combustível de negócios em Brasília, agora no governo Bolsonaro. Se havia dúvidas, a exoneração do funcionário apontado por Dominguetti como suposto cobrador de propina, o diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, acabou por eliminá-las.
A via rápida para intermediários que havia sido delineada no caso Precisa/Covaxin fica claríssima no caso da Davati/AstraZeneca: um e-mail enviado em inglês chega ao departamento chefiado por Ferreira Dias, indicado para o cargo por Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara dos Deputados — também convocado pela CPI. Recebe resposta poucas horas depois e consegue marcar uma reunião para o mesmo dia. Está tudo documentado e será apresentado pela CPI.
Enquanto isso, só para lembrar, a Pfizer, mesmo com ajuda até da Embaixada dos Estados Unidos, esperou longos seis meses para ser atendida, com preço muito abaixo dos apresentados tanto pela Precisa (Covaxin) quanto pela Davati (AstraZeneca), ambas na faixa de R$ 80. Na lista de explicações que terão de ser dadas à CPI, está a total falta de checagem da Logística do Ministério da Saúde sobre a legitimidade e até a viabilidade da oferta: o volume seria suficiente, em tese, para imunizar quase toda a população vacinável do Brasil.
Empresas como Precisa e Davati têm uma diferença essencial em relação a grandes companhias como Pfizer e AstraZeneca: a ausência de uma governança corporativa que, até para preservar a imagem, inclui severas políticas anticorrupção. Se ninguém ousaria de cobrar propina de US$ 1 por dose de vacina de um executivo da Pfizer e AstraZeneca, teria mais liberdade de fazê-lo diante de uma intermediária com menos instrumentos de compliance (conformidade).
O Brasil já teve um presidente que "não sabia". Não merecia mais um.
Atualização: a coluna entrou em contato com a assessoria de imprensa da AstraZeneca sobre a natureza da relação do laboratório britânico com a Davati Medical Supply, e a resposta foi a seguinte:
"Nos últimos meses, trabalhamos para cumprir nosso compromisso de acesso amplo e equitativo e fornecer a vacina para o maior número possível de países ao redor do mundo. Neste momento, todas as doses da vacina estão disponíveis sob acordos assinados com governos e organizações multilaterais em todo o mundo, incluindo a Covax Facility. Atualmente a AstraZeneca não disponibiliza a vacina por meio do mercado privado ou trabalha com qualquer intermediário no Brasil. Todos os convênios são realizados diretamente via Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e Governo Federal."