O depoimento dos irmãos Miranda — o deputado federal Luís Cláudio e o servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo — na tarde de sexta-feira (25) deveria ter jogado luz sobre a exótica negociação da vacina Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech.
Mas a tropa de choque e os críticos do governo Bolsonaro gritaram tão alto que podem ter provocado ruído na compreensão. Um dos indícios mais claros de que as tratativas foram absolutamente atípicas é o cipoal de empresas envolvidas: Bharat, Global, Precisa e Madison.
O Bharat é o produtor, a Global é sócia da Precisa, e a Madison é a que receberia US$ 45 milhões sem entregar nada ao governo brasileiro. Seria necessário o envolvimento de tantas empresas em um processo liso e transparente? A principal alegação dos aliados do governo para a necessidade da intermediação da Precisa é o fato de que, diferentemente da CoronaVac e AstraZeneca, representadas por institutos nacionais (Butatant e Fiocruz) e até da Pfizer, que tem uma divisão nacional, não havia uma representante brasileira da Bharat para fechar o negócio com o governo, uma exigência legal.
Não há, porém, explicação que pare em pé para a necessidade de transferência de US$ 45 milhões à Madison Biotech, registrada em Cingapura, um paraíso fiscal. Empresas desse tipo, chamadas de offshore, justamente por usar sistemas fora de seu país para obter vantagens fiscais, não são ilegais, embora não sejam os melhores canais para negociar com governos.
E se tudo foi tão normal, porque agora o governo Bolsonaro admite a necessidade de rever o contrato? Se a gritaria da tropa de choque atrapalha, a tentativa de provocar escândalo dos senadores críticos ao governo também não ajuda. A confusão foi tanta no depoimento dos Miranda que a coluna fez um esquema para facilitar o entendimento.
Os pontos mais constrangedores
1. A urgência no fechamento do negócio, em contraste com as negociações anteriores. Enquanto a consagrada Pfizer esperou ao menos seis meses, a Bharat Biotech entrou em uma espécie de via rápida mesmo não tendo o mesmo reconhecimento científico e de mercado.
2. O fechamento de contrato antes da aprovação da Anvisa. O presidente Jair Bolsonaro não perdeu oportunidade de afirmar que não compraria fórmulas que não fossem aprovadas pela agência nacional. Se é verdade que nenhum valor foi pago a qualquer uma das quatro empresas envolvidas, também é que o contrato foi firmado, tanto que agora se discute como rompê-lo.
3. A Madison não está mencionada no contrato, e o pagamento parcial dos US$ 45 milhões seria feito, se não fosse a recusa do servidor, sem a entrega de uma vacina sequer.
4. O preço da Coxavin (R$ 80,70 na época) é o mais alto entre as vacinas compradas pelo Brasil. A AstraZeneca teve valor máximo de R$ 26,34, a CoronaVac, de R$ 58,20, a Pfizer, R$ 60,20.
5. A pressão sobre Luís Ricardo Miranda, chefe da área de importação do Ministério da Saúde, por parte de Alex Leal Marinho, Roberto Ferreira Dias e o coronel Marcelo Bento Pires, segundo o servidor.
6. Ainda segundo o relato do servidor, o tipo de contrato com a Bharat era diferente dos demais porque espetava a conta do frete no importador, ou seja, no governo brasileiro. Com os valores atuais do frete, é um grande sobrepreço sobre a dose mais cara já negociada pelo Ministério da Saúde.
7. A tentativa de justificar todos os pontos acima como "normais" expõe o governo ainda mais do que se reconhecesse o problema e tentasse resolvê-lo. O senador Fernando Bezerra (MDB-PE) chegou a afirmar que é "normal" pagar contratos de forma antecipada.
8. A Global Gestão em Saúde é sócia de Francisco Emerson Maximiano na Precisa. E Maximiano também é sócio da Global, investigada por outro contrato firmado com o Ministério da Saúde, na gestão do então ministro Ricardo Barros (2016-2018). A compra da Covaxin foi beneficiada por uma emenda de Barros na medida provisória que liberou importação de vacinas não aprovadas pela Anvisa.