Como troféus, as sapatilhas de ponta com laços cor-de-rosa estão expostas na sala do apartamento no bairro Jardim Botânico, em Porto Alegre, junto de medalhas, prêmios e distinções. Em uma das paredes, de cor verde, quadros com fotografias em preto e branco contam a história de um passado glamouroso.
A bailarina disciplinada que enfeitiçou plateias e ajudou a moldar a cena da dança no Rio Grande do Sul já não está mais nos holofotes, mas a paixão pelos palcos nunca saiu dela. Morgada Cunha, coreógrafa, professora, solista e primeira bailarina do Corpo de Baile da extinta Escola Oficial de Dança do Theatro São Pedro, acaba de completar 90 anos.
— Olho para trás e penso: meu Deus, quanta coisa eu fiz — diz a eterna dançarina, mãe da cantora Adriana Calcanhotto, do baterista Claudio Calcanhotto e dos gatos Py e Ling.
Morgada traçou o destino aos 8 anos, assim que entrou no São Pedro com a mãe para assistir a um balé dirigido por Lya Bastian Meyer, que seria sua grande mentora.
— É isso, mãe, é isso o que eu quero para a minha vida! — disse a menina, encantada.
E assim foi. A pupila não demorou a se destacar nas aulas de Lya. Aos 16 anos, recebeu nota máxima nas provas finais e conquistou o sonhado diploma de Artista de Dança.
No auge do rigor e da forma, Morgada solou em grandes balés e óperas. Consagrou-se em 1954, no espetáculo Dom Juan, com música de Richard Strauss. Era a melhor em piruettes e piqué tours, com giros intermináveis.
Estudou em Buenos Aires, com Olga Ferri, e chegou a ser convidada a aprimorar a técnica na antiga União Soviética — oferta que teve de recusar por imposição paterna.
Tornou-se, então, professora na Escola de Dança do São Pedro, da qual, até hoje, guarda um pedacinho do caibro — a peça fica dentro de uma caixinha de papelão, cuidadosamente guardada em sua casa, como uma relíquia. A instituição funcionava ao lado do teatro, mas foi desativada pelo Estado e demolida.
Antes do melancólico adeus do prédio onde aprendeu os primeiros passos, Morgada fundou sua própria escola, na Sociedade Gondoleiros. Não parou mais.
— Por onde eu passava, criava novos grupos — recorda ela, cheia de graça.
Com o Conjunto Porto Alegre de Dança Livre, uma de suas invenções, a diretora levou a arte para clubes, sociedades esportivas e teatros. Excursionou pela Argentina (Paso de los Libres, Corrientes e Goya) e coreografou apresentações de Elis Regina na TV Gaúcha (Canal 12).
Mestra dedicada, ensinou o pas de deux em colégios estaduais, municipais e privados. Ela conhecida por sempre levar gravador, caixas de som e fitas K7 a tiracolo, com que havia de mais moderno na época.
Em 1971, passou a dar aulas na Escola Superior de Educação Física da UFRGS, onde fundou — é claro! — o Grupo de Dança da universidade, idealizou 13 cursos de extensão e lançou o projeto Unidança. Escreveu dois livros, viveu dois casamentos (dos quais diz não sentir falta) e, a certa altura da vida, criando os filhos sozinha, chegou a ter mais de 200 alunos por semestre e trabalhar de manhã, de tarde e à noite.
Morgada formou uma multidão.
A última dança em público foi aos 76 anos, em 2010. Dois anos depois, ela dirigiu o derradeiro espetáculo e foi homenageada no Porto Alegre Em Cena. Já não pensa em voltar, mas as cortinas seguem abertas, vistosas, e as luzes, acesas.
Da plateia, o público aplaude de pé.