"A memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas, e graças a este artifício conseguimos suportar o passado." (Gabriel García Márquez)
As pessoas que significaram tanto para tantos precisam ter as memórias preservadas, agora que já não estão mais aqui. E as histórias que construíram com perspicácia, ironia e bom humor precisam ser armazenadas no bazar das letras definitivas para que o tempo, esse triturador de memórias, não alcance destruí-las.
Sempre louvei o que o grande Juarez Fonseca fez com a memória de Mario Quintana (1906-1994), que, eternizado na sua poesia, ainda mereceu o bônus do Ora, Bolas! O Humor de Mario Quintana (L&PM, 2006), um livro maravilhoso, que chegou à quinta edição com 130 histórias, encarregadas de transferir para o leitor o humor agridoce do nosso poeta maior.
"Não vim por ti. Ocorreu-me que não era justo que teus leitores, ao lerem o maravilhoso prefácio, não tivessem o autor para autografar!".
Creio que o posfácio da biografia de Paulo Sant'Ana (1939-2017), por ter sido essa criatura genial que a ninguém conseguiu ser indiferente, merece que se reúnam episódios de sua genialidade/loucura, para deleite dos que não tiveram o privilégio do convívio.
Fui para Paulo Sant'Ana um dos muitos médicos que fracassaram na tentativa de fazê-lo abandonar o fumo, mas guardo dele a melhor das lembranças pelo jeito carinhoso com que cuidava dos amigos, que sabíamos serem muitos, mas não exatamente quantos. De qualquer maneira, os 29 convivas recrutados por ele para comemorar seus 73 anos estavam muito orgulhosos com o significado do convite.
Antes de ter uma coluna regular no jornal, recebi dele a oportunidade de publicar no seu espaço sagrado, um verdadeiro canhão que durante décadas ocupou a penúltima página de ZH e encantou duas gerações. Uma tarde, ao final de uma consulta, lhe agradeci a generosidade de conceder tal visibilidade a um escriba ocasional, e ele, com seu sorriso enviesado, debochou: "E nunca te ocorreu que eu pudesse estar sem assunto naqueles dias?".
Em 2008, ele aceitou prefaciar o Não Pensem por Mim (AGE), meu primeiro livro de crônicas. Quando cheguei para a sessão de autógrafos, ele já estava lá. Eu disse: "Obrigado Sant'Ana, que bom que vieste!". Ele respondeu: "Não vim por ti. Ocorreu-me que não era justo que teus leitores, ao lerem o maravilhoso prefácio, não tivessem o autor para autografar!".
Minha história preferida foi contada pelo insuperável Radicci, num almoço de confraternização dos cronistas do jornal: na virada do século, a RBS contratou um CEO de renome para sua gestão. O recém chegado quis logo conhecer o Sant'Ana, uma lenda da crônica gaúcha, e pouco conhecido fora daqui. O encontro começou com uma rusga: "O senhor não pode fumar aqui!". Sant'Ana retrucou: "Mas eu fumo na sala do Nelson!". "O senhor pode fumar na sala do Nelson, mas na minha sala o senhor não vai fumar!".
E então, veio o xeque-mate: "Meu caro, não me leve a mal, mas o senhor recém chegou e tem coisas que ainda não sabe: nesse edifício, todas as salas são do Nelson!".
Difícil não se render à velocidade mental de Paulo Sant'Ana, e injusto expor o seu legado ao esquecimento.