"No final, nos lembraremos não das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos." (Martin Luther King)
Se alguém registrar o que em algum momento prometeu, com a melhor das intenções, ficará surpreso anos depois ao reler o prometido e atribuir a si mesmo a responsabilidade de ter dito tamanha barbaridade.
Estes registros que servem para documentar o que pensamos são indispensáveis para reconstruir a história e são igualmente desconcertantes quando deparamos com a percepção mais comum na rememoração do passado: "Mas como é que eu fui dizer uma bobagem dessas?". Talvez por isso, tanta gente considere emocionalmente mais saudável não ficar chafurdando no passado e, assim protegidos, se eximir de penitência, fazendo de conta que o que passou, passou.
Os canalhas mantêm um acordo espúrio com o passado, anulando a consciência que representa, para os honestos, o derradeiro bastião da dignidade.
Mas essa atitude de pura conveniência costuma ter autonomia para ficar pulsando num cantinho remoto da nossa caixa de memórias, algumas delas execráveis e sempre disponíveis a incomodar aos de bom caráter, que terão que ruminá-las nas repetidas vezes em que elas voltam em madrugadas insones, sempre determinadas atrasar o amanhecer.
Um castigo do qual imerecidamente estão poupados os canalhas, que, acredita-se, mantêm um acordo espúrio com o passado, anulando a consciência que representa, para os honestos, o derradeiro bastião da dignidade.
Na recapitulação dos acontecimentos, o mundo digital tem sido implacável, criando uma verdadeira especialidade: a dos detetives da rede, dedicados a vasculhar o lixo do tempo em busca de uma estratificação social. De um lado, os farsantes, minoritários, mas tão barulhentos, que dão a falsa sensação de predominância. Do outro, uns tipos realmente estranhos, portadores de uma virtude cada vez mais rara: têm convicção e se orientam por ela.
Entre os dois grupos, sobrevivem os indiferentes, os da coluna do meio, que, todos estão de acordo, é melhor que permaneçam assim.
Os historiadores, que garimpam o passado para prever o futuro, porque aprenderam que adaptado ao momento novo tudo se repete, se deliciam com rompantes ingênuos ou cínicos dos pretensos arautos da nova ordem. Que, na realidade, não são mais do que tacanhos subestimadores da perspicácia e da memória daqueles que envelheceram sem jamais abrir mão da coragem de pensar por conta própria.
Alguns, para fugir da chateação recorrente de serem confrontados com discursos antigos e contraditórios, apelam logo para clemência improvável da mídia, com o descarado "esqueçam tudo que escrevi", mesmo sabendo que os traídos pela falsidade da atitude resistem à amnésia, com bravura.
Mas o tempo passa e, como se o remoto tivesse sido posto para dormir, eles voltam e se sentem confortáveis em recomendar atitudes que por preguiça ou cinismo nunca praticaram. Alguns desses desfilam debochados porque contam com a proteção intransponível de magistrados tão fraternais que não se constrangem em determinar quais bobagens podem ser publicadas, mantendo caladas aquelas que depreciariam seus protegidos.
Mas enquanto o YouTube, esse indiscreto guardião da memória, não for cassado, seguiremos estarrecidos com quanto neste mundo de caráter líquido é possível mudar de opinião em nome, claro, de um bem maior — que bem maior não faltará.
A aposta no esquecimento se materializa no esforço esquizofrênico de atualizar versões de um mesmo candidato, como se caráter pudesse ser modificado, quando todo mundo sabe que carregamos a sina de ser o que somos independentemente do que os outros queiram que sejamos.