"O maior erro do ser humano é querer tirar da cabeça, aquilo que não sai do coração." (Mario Benedetti)
Desde sempre os homens pretenderam viver mais que seus pares, como se essa conquista fantasiosa os colocasse em um nível superior aos seres comuns, esses que pagam impostos, tentam fazer os filhos mais felizes do que eles foram, contraem dívidas e, na falta de uma saída mais digna, pedem recuperação judicial.
Alguns, menos afeitos ao risco, se contentam e se sentem distinguidos por isso, com uma imortalidade simbólica, e a mais comum delas, e amiúde menos convincente, está atrelada à condição de membro de uma academia, mas existem tantas (academias) que o glamour tende a encolher por banalização.
Mas não é dessa imortalidade questionável a que me refiro. Minha intenção, desta vez, é reverenciar o fascínio que certas e especialíssimas pessoas exercem sobre seus contemporâneos, que em resposta ao tanto que significaram enquanto estavam vivos relutam a aceitar que a morte chegou e tendem a ignorar a lógica inegociável de enterrarmos os nossos mortos. E resistem ao irresistível, com repetidas homenagens, que visam sacudir a poeira do esquecimento, às custas de doses progressivamente desidratadas de sofrimento.
Quando um líder se vai, submergem os pactos, as amizades menos convictas, as promessas de solidariedade e a eternidade de ideais convergentes.
Enquanto isso, esses que morrendo resistem à ideia de "morrer" seguem atormentando os sobreviventes, que diante de uma dificuldade qualquer, antes de decidirem o que fazer, se submetem a tortura de, o tempo todo, imaginar o que o imortal faria naquela situação.
E então, apesar de toda a dor, de repente percebemos que passou um dia, depois outro, que pulamos a lembrança, e com um dolorido aceitável admitimos que o tempo, implacável como ele só, acabou prevalecendo.
De algum jeito, esses tipos raros serão sempre lembrados por terem exercido uma liderança que, por ser espontânea e genuína, se tornou inquestionável.
E o mais sedutor: essa supremacia se cumpria com tal naturalidade, que desarmava os potenciais insurgentes, de modo a induzir os ingênuos a acreditar que a providência divina tinha reunido, ao acaso, um grupo harmônico e maravilhoso, com uma inconcebível e inédita identidade de sentimentos.
Quando esse tipo de líder, apesar dos protestos, de fato se vai, resulta numa cratera enorme, onde submergem os pactos, as amizades menos convictas, as promessas de solidariedade e a eternidade de ideais convergentes.
O que se segue, a partir da morte de uma liderança inquestionável, é, no mais das vezes, previsível: os instintos mais primitivos vêm à tona, e os ex-liderados, agora acéfalos, se revelam sem mistificações, determinados a assumir o que sempre foram, sem nenhuma preocupação de disfarçar que forçavam aparentar o que não eram enquanto estiveram sob a batuta do ídolo morto.
A tentativa de simplesmente repor a figura do chefe, além de ser virtualmente impossível, porque liderança não se improvisa, ainda bate de frente com espíritos verdadeiramente inconsoláveis pela dor da perda.
Quanto tempo de luto será necessário para amenizar a dor, a ponto de recomeçar sem as amarras do ressentimento, é impossível prever.
Sem contar que, em alguns casos de liderança forte e inconteste, os programas e projetos simplesmente evaporam, depois de tentativas frustradas de reposição.
E então acabamos reconhecendo que, quando alguns desses "imortais" morrem, a era que se fez especial por conta deles morre também.