"Burocracia é a arte complicar o que é fácil pela valorização do supérfluo." (Desconhecido)
Rambert, na peça literária de Albert Camus A Peste, é o meu personagem preferido. Era um jornalista parisiense destacado pela editoria do semanário para reportar as condições em que viviam os árabes na Argélia. Estava em Oran, localizada na costa mediterrânea daquele país e que serviu de palco para a tragédia de Camus, quando se viu preso na cidade pelo fechamento do muro, na tentativa de conter a epidemia.
Ele inicia, então, uma peregrinação na busca da licença para sair "porque esta não era a casa dele e, tinha uma família esperando-o", e neste suplício ele encontra os modelos clássicos de burocratas. A descrição dos tipos é pretensamente completa (ainda que a gente não se canse das surpresas).
Os formalistas: que recomendavam seguir as leis, e ponto final. São os que mantêm o carimbo "indeferido" como arma de defesa pessoal.
Os bem-falantes e otimistas: que anunciavam que logo tudo passaria, com a pretensão de que o falso otimismo conduzisse o infeliz até à porta.
Os importantes: que pediam que deixassem uma nota resumindo seu caso e aguardassem instruções pelo correio.
Os fúteis: que ofereciam logo endereços de alojamentos mais baratos, admitindo que a esperança era inútil.
Os metódicos: que preenchiam fichas, para em seguida arquivá-las.
Os exaltados: que agitavam os braços para se mostrarem resolutivos.
Os aborrecidos: que nunca encaravam o cliente, porque um simples olhar poderia sugerir um vínculo inconveniente.
E os tradicionais: que sempre indicavam outras repartições e novas perícias, porque afinal a roda do sistema, que mantém tantos empregos, não pode parar de girar!
Gosto de Rambert pela capacidade de resiliência em enfrentar a má vontade dessas pequenas pessoas que adoram demonstrar um grande poder e que constituem a enorme legião que exerce uma função importante, porque sem normatização a vida em sociedade seria uma anarquia, mas que, com frequência, não resiste à tentação de extrapolar funções. O que aliás é uma previsível corruptela do caráter humano em relação a poder: a tendência de ampliá-lo, a menos que seja contido pela lei. O que não é tão simples, porque a tal norma teria que ser tão explícita que não comportasse interpretações. O que, convenhamos, é uma utopia, porque nunca ouvimos falar desse tipo de lei, se é que ela existe.
Mas gosto mais de Rambert, porque além de obstinado ele era um humanista verdadeiro, e se dispôs a ajudar o doutor Bernard Rieux, único médico a cuidar dos enfermos da cidade, enquanto aguardava a solução burocrática do seu caso. Um dia, ele comunicou ao doutor que tinha, finalmente, conseguido autorização para abandonar a cidade e voltar para sua família. Todos, agradecidos, o abraçam na despedida. Horas depois, ele volta e confessa: "Quando me acerquei dos portões da cidade, me dei conta que aqui há ainda muito em que eu posso ser útil, e que é vergonhoso alguém pretender ser feliz sozinho. E voltei!".
Ao concluir este texto, me ocorreu que talvez os burocratas, ao menos dessa vez, estivessem certos: "Não se pode permitir que um tipo desses, simplesmente, vá embora!".