José de Jesus Peixoto Camargo traz na ponta da língua a data da sua estreia como colunista oficial do caderno Vida, de Zero Hora: 3 de dezembro de 2011. A partir desse dia, depois de um rodízio com outros autores, o médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1970, especializado em cirurgia torácica e com formação acadêmica concluída na Clínica Mayo, nos EUA, passou a ser o titular do espaço anteriormente ocupado por Moacyr Scliar (1937-2011). Em entrevista por telefone, Camargo, 74 anos comemorados em agosto, também celebra a edição 1.500 do caderno, neste sábado (10):
— Valorizo muito as coisas duradouras, porque a efemeridade é uma marca da modernidade. A quantidade de coisas que dura pouco porque não tem uma base é assustadora. Eu festejo muito. Tenho certo orgulho por ter participado de 460 dessas 1.500 edições.
Ele também rememora algumas de suas crônicas publicadas na seção Palavra de Médico, fala sobre sua relação com os leitores e conta como o ato de escrever lhe ajudou a ser um médico melhor, dando início a um ciclo virtuoso.
Como é a sua relação com os leitores do Vida e de GZH?
É uma maravilha. Já tive várias experiências de interação muito comoventes. E quando as pessoas se identificam com uma linha editorial, se sentem estimuladas à reciprocidade. Alguns desses momentos valem crônicas. Como a de uma moça de 20 anos que trabalhava em uma loja de roupas femininas de grife. Meio-dia, só ela na loja, entra uma senhora corpulenta. A vendedora imediatamente se deu conta de que não tinha roupa para a senhora. Ficou numa angústia, sem saber o que fazer enquanto a mulher rodopiava pelo ambiente. Até que a cliente chegou para ela e perguntou: "Vocês não têm tamanho GG, não é?". A moça abriu os braços e respondeu: "Como que não! Olha o tamanho desse abraço!". A mulher só parou de chorar para agradecer porque não lembrava de ter recebido um abraço tão carinhoso. Num outro momento, um paciente idoso me procurou para pedir que o ajudasse a morrer. Quando descobri que o problema dele era só solidão, contei do avô maravilhoso que tive e perguntei se ele aceitaria o compromisso de substitui-lo. Ele parou de chorar, e combinamos várias tarefas que ele deveria assumir para me ajudar a escrever. Ao sair, ele pediu desculpas dizendo-se envergonhado porque viera se queixar da vida e descobrira que ela ainda estava interessada nele. Esta crônica, O Substituto, foi uma das que eu mais gostei de ter escrito.
Conviver com pacientes graves significa vê-los expostos ao medo, um sentimento poderoso. Na verdade, é o maior autenticador do caráter das pessoas. Quem está ameaçado de morte não tem ânimo nem tempo para tentar impressionar alguém. Ele simplesmente é.
Como a experiência médica ajudou na prática como colunista?
As áreas da oncologia e dos transplantes, da medicina de alta complexidade, são ricas em histórias. E conviver com pacientes graves significa vê-los expostos ao medo, um sentimento poderoso. Na verdade, é o maior autenticador do caráter das pessoas. Quem está ameaçado de morte não tem ânimo nem tempo para tentar impressionar alguém. Ele simplesmente é. E médico que, depois de 10 anos de atividade, ainda não se transformou em especialista em gente está desperdiçando a matéria-prima mais rica em humanismo.
Como a experiência de colunista ajudou na prática médica?
Eu me tornei uma pessoa mais atenta, mais curiosa, mais complacente com as pessoas. A capacidade de ouvir nos transforma em uma usina de histórias. O ato de escrever acabou humanizando a relação médico-paciente. É muito frequente que algum paciente venha para o consultório com algum texto que leu, gostou ou repudiou. Há o estabelecimento de uma relação original, porque passamos a ser tratados com intimidade por pessoas estranhas. Somos desconhecidos, mas surgem confissões de uma pureza que me comove. Certa vez, eu estava fazendo uma sessão de autógrafos, até quinze para as onze da noite, e não terminava. De repente, chegaram três velhinhas. "Viemos aqui, e esperamos até agora, porque temos uma história". Elas moravam no bairro Mario Quintana, nove amigas na mesma rua. A que me contava a história era a única que assinava a Zero Hora. Era também a que acordava mais cedo no sábado. Lia a coluna, recortava, botava num plástico e levava para a segunda amiga que acorda mais cedo. "E assim por diante, até que no café da tarde todas já lemos e discutimos sua coluna", ela disse. "O senhor sabe o que é isso? Isso é paixão, é o que sentimos pelo senhor". Mas também lembro de uma crônica, sobre uma avó morrendo de câncer, que implorou que eu fizesse o possível, para que ela não morresse antes do domingo, quando a sua neta chegaria dos EUA trazendo a bisneta recém-nascida. O tumor não participou da combinação e ela morreu na madrugada de sábado. Dias depois fui abordado no supermercado por uma velhinha muito indignada. "O senhor não podia ter deixado ela morrer!", "ela queria um final feliz!", "é sua responsabilidade contentar seus leitores!".
Aproveitando o gancho, há alguma crônica da qual o senhor se arrepende?
Não completamente. Em março de 2012, fiz uma crônica sobre tatuagem, muito bem humorada do meu ponto de vista (Camargo disse que era uma moda de gosto estético duvidoso e criticou "os que praticam a aberração de tatuar o corpo inteiro, que dá aquele aspecto grotesco e repulsivo"). Recebi 300 mensagens agressivas, 200 apoiando. Foi uma experiência interessante porque eu tinha mexido com uma tribo. Comportamentos tribais são pouco racionais e muito agressivos. Em Garopaba, um velhinho tinha um jaguar enorme nas costas e uma declaração de amor no peito. Fiquei com pena do jaguar, que tinha desabado com o passar dos anos. Na declaração de amor, por sua vez, faltavam letras que mergulharam nas pregas da pele. Desejei que o alvo daquele amor tivesse boa memória. Escrevi porque eu queria alertar que o modismo da tatuagem em adultos resolvidos, tudo bem, mas não na imaturidade dos adolescentes, que não sabiam que aquela era uma decisão definitiva, porque depois de uma tatuagem, pele normal nunca mais. Eu me baseei em um artigo da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, segundo o qual 50% dos adolescentes procuravam um cirurgião no primeiro ano após a tatuagem para removê-la. Aprendi muito com aquela reação. Possivelmente, entre os mais indignados eram os que estavam revoltados com a irreversibilidade da sua própria tatuagem. Aquela coisa de atacar o mensageiro e não a mensagem. Fiquei sabendo de uma professora que dá aula de japonês para brasileiros e que recebia gente com tatuagem oriental pedindo a ela que traduzisse o que estava escrito. Ela sempre perguntava: "O que lhe disseram?". Respondiam "amor eterno", "Deus é pai", essas coisas. A professora concordava, "é isso mesmo". Ela ficava constrangida de dizer que o símbolo devia ter sido copiado de um cardápio de restaurante japonês, porque dizia "camarão com gengibre".
Há alguma crônica da qual se orgulha?
Algumas mais do que outras. A primeira coluna foi muito marcante. Era sobre a arte de consolar, uma tarefa que não é para principiantes. Contei a história do menino de quatro anos que tinha visto o vizinho sentado num banco de pedra, chorando. Era um velhinho, que tinha perdido a esposa naquela semana. O garoto pulou o muro e sentou do lado dele. No dia seguinte, a mãe do menino recebeu flores e um cartão de agradecimento do vizinho. Quando perguntou ao menino o que ele tinha dito ao velhinho. "Eu não disse nada", respondeu o guri. "Eu só o ajudei a chorar". Essa sensibilidade de criança, essa inocência, é algo que me comove muito. Tem uma outra, De Todas as Fomes, do meu primeiro livro, A Tristeza Pode Esperar. É da minha época de residente e se passa na enfermaria dos indigentes. Na ala masculina, havia um velho que contrariava a norma da alimentação. Os pratos voltavam sempre raspados, apesar de ele ter câncer de esôfago. Era paradoxal. Espiei e vi que ele tinha uma parceira, a esposa dela, muito magra, protelando a saída para chegar a hora do almoço. Era ela quem comia a maior parte do prato. Aquilo me comoveu. Passei a prescrever uma dieta hipercalórica. Aí um dia ela adoeceu, tinha internado no HPS por AVC. O marido, triste, não comia mais nada. O único dia de algum entusiasmo foi quando ele soube que ela iria voltar. Mas câncer de esôfago não esperou e ele morreu sozinho, comigo. Na fronha, descobrimos seis pãezinhos feito biscoitos e soubemos então que ele não tinha desistido de esperar que ela voltasse.
Os pais devem estimular que os filhos descubram o encanto pela arte, o fascínio das coisas duradouras. Não impor, mas facilitar. A arte humaniza. Logo depois da alfabetização, temos o compromisso de viciá-los em leitura. E insisto que os jovens precisam descobrir a música clássica.
Que palavra de médico o senhor daria para pais e futuros pais?
Pediria que os pais estimulassem, precocemente, que os filhos descobrissem o encanto pela arte. Não impor, mas facilitar. A criança e o adolescente precisam descobrir o fascínio das coisas duradouras. Falo de arte de um modo geral, porque qualquer arte humaniza. Logo depois da alfabetização, temos o compromisso de viciá-los em leitura. Insisto que os jovens precisam descobrir a música clássica. Se não houver empolgação, aconselho que assistam a um filme maravilhoso, chamado Mar Adentro, onde um poeta espanhol (personagem de Javier Bardem) que ficara tetraplégico se apaixona por uma mulher interessada nele. Quando soube que ela tinha ido dar um passeio na praia, ele, todo retorcido e deformado, se imagina outra vez a pessoa perfeita que fora um dia e sai voando pela janela em direção a sua amada. Pois todo este trajeto imaginário tem como fundo musical Nessun Dorma. Acho que esta ária é uma boa isca para resgatar cada vítima potencial das músicas "modernas". Na minha opinião, é um dos momentos mais lindos da associação música e cinema. Outro episódio inesquecível acontece em O Pianista, do (Roman) Polanski, quando o comandante nazista descobre um judeu maltrapilho escondido numa construção bombardeada e lhe pergunta o que ele fazia. Ele responde que era pianista, e o coronel pede ao personagem de Adrien Brody para tocar alguma coisa ao piano. Ele, o pianista, está com frio, enferrujado, mas, quando começa a tocar um Noturno de Chopin, é um deslumbramento. Se você ouve um dos Noturnos de Chopin e não se comove, então tem alguma deformação espiritual incurável.
Livros, filmes e músicas
A literatura, o cinema e a música são inspiração constante para J.J. Camargo. Volta e meia ele faz referência a escritores, filmes ou canções em suas colunas. Aqui, o médico e escritor revela seus prediletos:
Gabo e Saramago
Gosto muito de Philip Roth, Patrícia Highsmith, Clarice Lispector e Júlio Cortázar, mas meus preferidos são Gabriel García Márquez e José Saramago. Li tudo dos dois, acho uma festa. Com o Gabriel tive experiência pessoal interessante. No fim dos anos 1990, fui ao México para falar sobre transplante de pulmão. O presidente da sessão onde eu falaria era um cirurgião colombiano, Fidel Camacho, que tinha no currículo uma experiência preciosa: tinha operado o Gabo de um tumor de pulmão há alguns anos. Logo depois da apresentação lhe confessei da minha admiração pelo seu ex-paciente e combinamos jantar depois da conferencia. A conversa se arrastou e contando de tudo que tinha lido, lhe contei que sabia o nome dos principais personagens dessas novelas. Passados uns três anos, houve um congresso em Cartagena, na Colômbia. O Fidel estava lá e me ligou, "O Gabo está aqui. Ontem jantei com ele e contei de um brasileiro fascinado pela sua obra, e ele perguntou se tu aceitas jantarmos juntos hoje!" A minha resposta foi a primeira coisa que ele contou ao Gabo: "Vou dar uma olhada na minha agenda". Imagina um cara de Vacaria que vai olhar na agenda para ver se tem tempo de jantar com Gabriel García Márquez!".
Rigor e emoção
No cinema, tem o (Martin) Scorsese, um perfeccionista. Gosto muito do Brian de Palma, do rigor com quem dirige. Os Intocáveis é um filme de um rigor, de perfeccionismo, dos figurinos confeccionados por Giorgio Armani à trilha do Ennio Morricone, aquela reconstituição da época... Todo grande diretor é capaz de criar tipos caricaturais inesquecíveis. (Alfred) Hitchcock, ontem, e (Pedro) Almodóvar, mais recentemente, fazem isso muito. O Lars von Trier, só por Melancolia, tem que ser reverenciado sempre. Francis Ford Coppola, Woody Allen e David Lynch completam a minha lista. Há momentos deslumbrantes no cinema, como o ar de felicidade da Toni Collette em O Casamento de Muriel, ao confrontar as amigas ricas e bonitinhas para mostrar que ela também conseguira casar, mesmo que o casamento tivesse sido arranjado, é uma cena linda. Ou a alegria da Kathy Bates quando se supõe amada pelo seu escritor refém em Misery (Louca Obsessão). São momentos mágicos de interpretação. Assim como inesquecíveis foram os 15 minutos de interpretação de Montgomery Clift, fazendo um doente mental, em O Julgamento de Nuremberg.
Árias italianas e canções francesas
Na música, me marcam as coisas clássicas, especialmente algumas árias inesquecíveis como Una Furtiva Lágrima, Nessun Dorna, E Lucevan le Stelle e O mio Babbino Caro. Tenho grande paixão por tudo que a Elis Regina gravou, adoro Tom e Vinicius, gosto muito das músicas mais antigas do Frank Sinatra. Tenho um sério problema com a música moderna, parece que as pessoas perderam completamente a inspiração. A música italiana dos anos 1970 foi imbatível, assim como as canções francesas dessa época. Frequentemente me vejo cantarolando Je t'Aime, ou Ne me Quitte Pas (a versão com a Maysa é a minha preferida), e acho a interpretação da Louisa Johnson do Jealous, de Labrinth, impressionante.