A população de Orã é dizimada por uma ameaça invisível. Na cidade localizada na costa da Argélia, as pessoas morrem após alguns dias de febre e gânglios inflamados. Orã entra em quarentena: ninguém entra ou sai. Pilhas de cadáveres se aglomeram pela cidade, o sistema de saúde entra em colapso e as vidas viram meros dados estatísticos.
Essa descrição é assustadora em tempos de pandemia de covid-19 e vem do romance A Peste, publicado em 1947 pelo escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Acompanhando um médico que se desdobra para conter a doença, o livro permeia temáticas como a morte, a solidariedade e a solidão. Com a propagação do novo coronavírus, A Peste entrou na lista dos livros mais vendidos.
As vendas da obra dobraram no início do ano na França, conforme dados divulgados pela Edistat (que elabora estatísticas sobre publicações no país). Na Itália, A Peste foi alçado ao terceiro livro mais vendido, de acordo com informações do jornal La Repubblica. A editora britânica Penguim Classics relatou ao jornal The Guardian que está batalhando para dar conta da demanda: em fevereiro, a empresa vendeu 371 exemplares da obra e, três semanas depois, os números aumentaram seis vezes, com 2.156 cópias vendidas. No Brasil, a editora Record aponta que houve um aumento de 65% na procura de A Peste no último mês. Na Amazon, a procura triplicou na primeira quinzena de março.
Há outros títulos relacionados à epidemias que também tiveram as vendas incrementadas com a covid-19, como Ensaio Sobre a Cegueira (1995), do português José Saramago, e The Eyes of Darkness (1981), do americano Dean Koontz. No entanto, é a obra de Camus que ressoa.
"A Peste" na pandemia
Mas por que ler A Peste em meio a pandemia? O que desperta interesse nesse romance? O escritor, doutor em teoria literária e professor do curso de letras da Ulbra Ítalo Ogliari destaca que a narrativa do livro não fala simplesmente de uma peste, mas do próprio ser humano e seus dramas existenciais mais profundos. Para ele, ler a obra nesse momento não se trata de adentrar ainda mais em um universo de caos ou pavor. Pelo contrário.
– É olhar para o momento que estamos vivendo e refletir sobre como será daqui para frente, o que aprendemos de novo, a absurdidade do egoísmo e a importância da solidariedade e da coletividade para a vida humana – aponta Ogliari.
Ricardo Barbarena, professor da Escola de Humanidades da PUCRS, ressalta que um dos motivos para as pessoas irem atrás de um objeto artístico é a busca da reprodução do real. Assim, A Peste é lida porque estamos vivendo algo similar ao livro:
– Parece que é uma forma de sublimar todas as dores e formas de restrição que estamos vivendo hoje. As pessoas vão atrás de A Peste como um exercício de sublimação, de catarse, de encontrar ali uma forma de libertação.
Conforme Raphael Luiz de Araújo, pesquisador de Camus, doutor em Letras pela USP e tradutor de Os Primeiros Cadernos de Albert Camus, A Peste conecta o leitor à humanidade. Ele destaca que a obra narra de maneira envolvente a eterna luta contra a morte:
– Nos aproxima com otimismo da nossa face humana, a mesma face que atravessou muitas eras para se encarnar em nós.
Já para André Guerra, psicólogo e mestre em psicologia social pela UFRGS, a mensagem mais profunda de Camus em A Peste é que, diante de uma crise, é possível ver com maior clareza o que realmente importa. Porém, uma vez retomada a “normalidade”, esquecemos que nossos hábitos e rotinas estão sempre ameaçados. Guerra reflete que, a qualquer momento, uma cidade feliz pode ser assolada pela peste, e os hábitos dos próprios cidadãos podem ter contribuído para seu desfecho.
– Ao lermos A Peste, podemos nos convencer de que, na ausência da possibilidade de uma vitória definitiva sobre o mal, ainda nos resta estarmos conscientes e dispostos a não sucumbirmos à fatalidade do flagelo e sempre nos colocarmos em solidariedade ao lado das vítimas – define Guerra.