Beijei Nina Hagen na boca. Claro que não foi nada assim tão intenso e (relativamente) duradouro quanto o caso dela com Supla, o cantor. Mas foi bem emocionante. Até porque o contexto inteiro beirava um sonho: o início de um novo tempo, o (re)nascimento de uma nação, o fim do arbítrio, da ditadura, da escuridão. Era 13 de janeiro de 1985, a terceira da espantosa sequência de 10 noites do primeiro e inesquecível Rock in Rio. Dali a dois dias, Tancredo Neves seria eleito presidente do Brasil – em eleição indireta, pelo Colégio Eleitoral e, como se sabe, ele iria morrer antes de tomar posse e virar o primeiro presidente civil em 20 anos. Mas ninguém sabia disso e o que interessava é que os milicos estavam voltando para os quartéis de onde não deveriam ter saído.
E naquela noite do dia 13 – como nas duas anteriores e nas seis que se seguiriam – o que importava era a música, a paz e o amor. E se era para ser o Woodstock brasileiro, lama não faltou. Na verdade, a tal Cidade do Rock, na zona oeste do Rio, parecia um lodaçal maior do que Brasília. Os Paralamas do Sucesso, Lulu Santos e a Blitz já tinham se apresentado e deixado sua marca naquele mundo. E foi então que Nina Hagen subiu ao palco. Ninguém sabia quem era, mas depois que ela soltou o vozeirão de soberba soprano punk, todos souberam que ela havia chegado. E ficou provado: só dá pra filosofar o punk em alemão.
Nina Hagen é a “eterna garota de Berlim”. Ela nasceu do lado errado do muro, seus avós tinham sido mortos pelos nazistas, seus pais perseguidos pelos comunistas, ela fugiu com a mãe, conseguiu chegar a Londres, virou amiga do Johnny Rotten e da Siouxsie e... veio parar no Brasil. Feito uma valquíria, conjurou os poderes do anel dos nibelungos, na ópera punk dos três vinténs. Eu estava lá e – não me pergunte como – tinha acesso ao backstage. Ela saiu do palco eletrizada, coberta de sangue, suor e cerveja, olhou para mim e ... me tascou um beijo na boca. Foi bem emocionante. Surpreendente e inesquecível. Nem dei bola depois de descobrir que ela beijava todo mundo e que seria namorada do Supla. Naquela noite, fui o primeiro.
Claro que você sabe porque estou contando tudo isso agora, não é? Ora, ontem, Angela Merkel, a chanceler que deu abrigo a milhões de refugiados, combateu o aquecimento global, enfrentou Trump e pairou acima da direita e da esquerda, despediu-se do cargo depois de 16 anos no poder na Alemanha. Na cerimônia de adeus – uma parada com os soldados carregando tochas –, ela escolheu três músicas para a banda militar executar como sua valsa de despedida. E dentre clássicos bem caretas, estava Du hast der Farbfilm vergessen, dilacerante hino punk gravado por Nina Hagen em 1974.
Ah, linda garota de Berlim, quisera eu te beijar. Na boca, claro.