Hei de ter nascido sob uma boa estrela, pois já desfrutei de inúmeras experiências extraordinárias. Poucas, porém, mais transcendentais, translúcidas e transformadoras do que o show da banda Grateful Dead, que assisti no outono de 1986, no Giants Stadium, em Nova York. Foi um batismo, uma confissão, uma comunhão e sua confirmação. Em suma, um rito de passagem, uma liturgia, uma cerimônia iniciática.
Para quem nunca ouviu falar do Grateful Dead, ou ouviu, mas não está familiarizado com o que esse grupo significou para a contracultura, a cena psicodélica e o florescimento no movimento hippie, minhas hipérboles podem soar exageradas. Mas são até modestas diante da catarse coletiva que presenciei e da qual tomei parte de corpo e alma e aura.
O Grateful Dead iniciou sua carreira em 1964 em circunstâncias jamais vividas antes, ou depois, por nenhuma banda de rock: eles eram responsáveis pela trilha sonora dos chamados Acid Tests postos em prática pelo escritor Ken Kesey. Autor do clássico Um Estranho no Ninho, Kesey fora um dos voluntários recrutados pela CIA para tomar LSD – sendo pago para isso! Sim, a CIA, sempre incompetente e malévola, aventou a possiblidade de borrifar a água dos russos com o ácido lisérgico, durante a Guerra Fria. Sei que parece (duplamente) loucura, mas está tudo bem documentado. Kesey e o psicólogo Timothy Leary, entre outros, tomaram o produto – e adoraram. Os agentes da CIA concluíram então que era melhor abortar o plano. Tarde demais.
A banda Grateful Dead não só abriu as portas da percepção: arrancou-as de vez dos batentes"
Leary e Kesey saíram da experiência dispostos a encharcar não as caixas d'água mas os cérebros dos EUA com LSD. Kesey reformou um velho ônibus escolar, tingiu-o com todas as cores do arco-íris, arregimentou o inigualável Neal Cassady (consagrado como Dean Moriarty no livro On the Road, de Kerouac) para ser o motorista daquela nau dos insensatos e convenceu o Grateful Dead a fazer as vezes de flautista de Hamelin: a banda tocava seu som suavemente acachapante, lançando uma onda sonora repleta de nuances e sobretons que atraía milhares de desavisados, aos quais eram ofertados os mágicos tabletes. Cabe lembrar que até 1966 o LSD era legal: quem o proibiu foi o ator medíocre, dedo-duro e pessoa nefasta Ronald Reagan.
O ácido caiu na ilegalidade, Ken Kesey e Timothy Leary chegaram a ser presos – e não Reagan, veja só. Mas o Grateful Dead seguiu livre e solto, induzindo milhões de pessoas do mundo todo a não só abrirem as portas da percepção, mas arrancarem-nas dos batentes. Até chegar a minha vez de bater às portas do paraíso e vê-las escancaradas para que eu penetrasse naquele mundo onde o céu é amarelo e o sol é azul. Só que meu tempo e espaço findaram-se antes que pudesse contar o que rolou no Giants Stadium 35 anos atrás. Mas ainda me parece que foi depois de amanhã.