Não que o recato, a temperança e o comedimento fulgurem dentre minhas qualidades. Não chegam nem aos pés da modéstia. Mas a verdade é que jamais me jactei do fato que agora conto, embora ele tenha se espalhado feito rastilho de pólvora tão logo aconteceu. E, enfim, se decidi falar é só porque, além de estarmos em plena Copa do Mundo, acabo de ver Esquemas da Fifa, minissérie da Netflix, que desvela os... bem, os esquemas da Fifa.
O grão de areia que me toca nesse latifúndio deu-se, oh céus, há 44 anos, na Copa da Argentina. Como a série prova, foi ali que tudo teve início – embora em 1974, na Alemanha, a Adidas já tivesse começado a expandir seus tentáculos. Mas o fato de a Fifa ter insistido em realizar o Mundial num país devastado por uma ditadura assassina torna a corrupção que envolveu a compra da Copa pelo Catar mero jogo de amarelinha.
Fui escalado para fazer a cobertura da Copa de 1978 por essa mesma ZH diante de seus olhos. Embarquei, dividido entre o orgulho e o temor. A coletiva de abertura de João Havelange para mais de 300 jornalistas do mundo todo deu-se no Sheraton, em Buenos Aires. Fomos alertados de que perguntas sobre “política” não seriam toleradas: quem ousasse fazê-las teria a credencial cassada. “Perguntas de cunho pessoal, pode?”, indaguei. O assessor grunhiu algo que tomei como inequívoco “sim”. Então, do alto de seus quase dois metros, o dono da Fifa falou sobre aquela incrível Copa, a eficiência dos militares que a organizaram e a paixão dos argentinos pelo futebol, a lei e a ordem.
Botei energia tão intensa que a cara para a qual o dedo de Havelange apontou já na segunda pergunta foi... a minha. Sabia que seria escolhido, ainda assim meu coração quase saltou pela boca. Levantei e, caprichando no sotaque de magro do Bomfa, indaguei: “E aí, Havelange, o que tu acha do Led Zeppelin?”. A ideia original era perguntar se ele já havia tomado LSD, mas amarelei na hora. Ele me fulminou com seus olhos azuis como um lago suíço, engoliu em seco, virou a cara e disse: “Next”.
Um burburinho, seguido de gargalhadas, alastrou-se pela sala; a entrevista quase acabou. Tive detratores, claro. Mas jornalistas brasileiros, liderados por Nelson Motta, encarregaram-se de espalhar que minha afronta era uma forma de revelar a desconformidade com o fato de não podermos contestar o lema da Fifa de que “futebol e política não se misturam”. Misturam-se, sim; sempre se misturaram. O que passou a fazer parte do coquetel, a partir da Argentina, foi a desfaçatez, a conivência e, acima de tudo, claro, a corrupção.