O Brasil teve sua Hebe. Ela era exuberante e estridente, ficou anos na TV e ainda há quem dela goste – apesar do flerte explícito com a cafonice e de posições como, para ficar só num caso que agora voltou à tela, pedir o linchamento dos donos da Escola Base, acusados (injustamente) de abusar sexualmente dos alunos.
A Argentina também teve sua Hebe e, à primeira vista, ela não parecia exuberante. Mas com certeza era estridente e sua voz ecoou ruidosamente em seu bairro, em Buenos Aires, a seguir por seu país e, por fim, por todo o “mundo livre”. Nascida em 1928, Hebe de Bonafini era mãe de família e dona de casa. Profissão? “Do lar”. Até que dois de seus três filhos foram sequestrados, torturados e “desapareceram”. Em 25 de maio de 1978, sua nora Maria Elena Cepede teve o mesmo destino. Eu estava na Argentina naquele dia. Fazia a cobertura da Copa do Mundo para este jornal em suas mãos (ou em sua tela). Cinco dias depois, fiz 20 anos lá. Dois a menos do que Maria Elena, cinco a menos do que Jorge Omar e sete a menos do que Raul Alfredo, filhos de Hebe.
Mas essa esteve longe de ser minha única relação com essa mulher extraordinária, fundadora do movimento que passou à história como Mães da Praça de Maio, embora, de início, os canalhas as chamassem de Loucas da Praça de Maio. Hebe trocou o avental por um lenço na cabeça, no qual bordou os nomes e datas de desaparecimento dos filhos e da nora e, juntando outras mães vítimas do mesmo pesadelo, passou a rondar, qual alma penada, a frente da Casa Rosada, sede do governo, então usurpado por uma junta militar assassina.
Em 1980, ela veio a Porto Alegre, e embora o Brasil também vivesse sob uma nefasta ditadura militar, consegui entrevistá-la, em articulação do ativista dos direitos humanos Jair Krischke. Foi um encontro tenso e clandestino. A matéria saiu no Coojornal, de Porto Alegre, e teve grande repercussão no Brasil, na Argentina e no mundo – pois foi o primeiro depoimento de Bonafini a escapar da censura. Claro que é algo que me encheu de orgulho, mas mais do que isso o que sempre me emocionou foi o fato de Hebe passar a me escrever lindas cartas por anos a fio.
Hebe morreu domingo, aos 93. E morreu vitoriosa, pois o ditador Videla apodreceu na prisão e seus crimes foram expostos aos olhos do mundo. Em honra a ela, sugiro que veja o filme Argentina, 1985 e ao final repita: “Nunca mais”. Pois, por mais que gente desprezível ouse se aglomerar em frente a quartéis clamando por um golpe, não vão levar. Nunca mais.