Certa feita, tive uma namorada na Alemanha. Não quero me exibir além do habitual, mas se tratava de um notável exemplar da espécie humana. Tinha a pele láctea, os olhos azuis fulgurantes e o cabelo negro como a asa da graúna. William Waack e Ivan Pinheiro Machado não me deixariam mentir sozinho. Eles a viram. Waack disse: vou espalhar que você namora a garota mais linda da Europa. Perguntei quanto ele cobraria por isso – mas não fechamos o acordo.
Ela se chamava Elke. Era guia de alta montanha e levava turistas até o acampamento-base do Mont Blanc. Tinha morado em casas abandonados em Kreuzberg, em Berlim, e Christiania, em Copenhague. Era exímia ciclista e conhecia os mais recônditos bares de Frankfurt. Sim, o típico caso de muita areia para o meu caminhãozinho, mas o fato é que aconteceu. Se tomasse mais do que um banho por semana e tivesse um pouquinho menos de cabelo no sovaco, bom, aí seria Elke Maravilha.
Sim, porque, ainda por cima, ela era letrada. A ponto de chegar a gerente da maior livraria de Frankfurt, a lendária Mandala. Para vender livros na Alemanha, você tem que fazer curso de quatro anos – acrescidos de mais dois se quiser ser gerente. A dona da livraria se chamava Martina e adorava sua exemplar funcionária Elke. Tanto é que emprestou sua BMW para sairmos, Elke e eu, para um jantar de despedida.
Mal rodamos dois quarteirões, o sinal fechou e ela freou. Então, um alemão enorme, de coturno e feições de guerreiro teuto, desferiu um formidável pontapé no para-lamas dianteiro direito. Bem do meu lado! Fez booom! Antevi o filme todo: eu descendo do carro para, em nome dos vestígios de honra que ainda preservo, tomar-lhe satisfações e, em seguida, eu próprio transformado num plasma sangrento e disforme pelo fauno germânico.
Mas quando botei a mão no trinco, Elke disse: "Não faça nada! Ele tem razão! O erro foi meu". Como assim, perguntei, entre surpreso e aliviado. Ela explicou que havia parado com uns, sei lá, juro, 10 centímetros, só o para choque do carro, encostando na faixa de contenção – não na faixa de pedestre, que isso daria pena de morte –, na faixa de contenção que antecede a faixa de segurança. "Quem manda aqui é o pedestre", latiu o homem de Neanderthal defensor da cidadania.
Pois bem, devo confessar que adorei quando, na semana passada, vi um vereador de Joinville passar a pé por cima de um carro que havia parado em cima da faixa – da faixa mesmo – lá em Santa Catarina. Elke não tem telefone, nem e-mail, nem redes sociais. Aliás, ela agora mora no Alasca. Senão, pediria para ela me dizer onde eu posso encontrar aquele alemão, pois, já que a campanha da prefeitura de Porto Alegre que espalhou aquelas mãos de papelão para os pedestres acenarem e os carros pararem ao primeiro sinal não serviu para nada, quem sabe não chegou a hora de trocarmos as mãos pelos pés?
Também aproveitaria para perguntar para ela como andam os banhos na neve.